“‘Dificilmente alguém morrerá por um justo; por uma pessoa muito boa, talvez alguém se anime a morrer’ (Rm 5,7). É possível encontrar alguém que se anime a morrer por uma pessoa de bem. Mas, por uma pessoa injusta, ímpia, iníqua, quem quereria morrer, a não ser somente Cristo, o Justo, para justificar até os injustos? Não tínhamos merecimento algum, meus irmãos, pois tudo em nós eram obras más. Contudo, apesar disso, a misericórdia do Redentor não abandonou os homens. Eles mereciam ser punidos. O Senhor, porém, em vez da punição, que era devida, concedeu a graça, que não era devida” (Dos Sermões de Santo Agostinho, bispo).
Deus nos dá aquilo que não nos é devido. Em Sua justiça, Ele não Se prende aos nossos méritos. Quanto nos custa entender isso! Ao contrário, Deus ama dar de graça. Aliás, é o que Ele mais gosta de fazer. Quem entendeu isso foi Santa Teresinha; ela foi tão longe nessa compreensão, que encontrou a melhor maneira de agradar a Deus: não querer nada de Deus por mérito, mas somente pela pequenez, ou seja, pela humildade e dependência de Deus. Santa Teresinha entende que a relação do homem com Deus é pautada na confiança se ser filha.
Na verdade, se for por mérito, não merecemos nada! Nem na ordem da criação, porque existir mesmo é dom de Deus, menos ainda na ordem da graça, porque somos pecadores. Aliás, a doutrina católica ensina que, mesmo nossos atos meritórios de bondade e virtudes são precedidos pela graça de Deus, ou seja, mesmo o que fazemos de bom, foi antes movido por Deus. Então, tudo o que Deus faz em nosso favor é pura generosidade. Isso é importante, para entendermos que a misericórdia não é simplesmente o gesto de perdão de Deus aos pecadores. É muito mais que isso, é o amor de Deus em movimento que poderosamente sustenta todas as coisas. Tanto mais essas coisas são frágeis, maior será o movimento do Amor, maior será a misericórdia.
Os movimentos da misericórdia
Na misericórdia de Deus existem dois movimentos: a compaixão e a onipotência. A compaixão é esse gesto de Deus de Se abaixar à condição humana, misturar-Se a ela. O mistério da Encarnação do Verbo é pura manifestação da misericórdia de Deus. Deus Se abaixa e Se mistura à lama do pecado humano. Jesus, ao imergir no rio Jordão, mergulhou na lama humana. Se em nosso batismo mergulhamos em Deus para a Sua Vida, Jesus, no Jordão, mergulhou na lama humana para nossa morte.
Santo Tomás de Aquino afirma que a misericórdia de Deus “não é um sinal de fraqueza, mas antes, qualidade da onipotência de Deus.” Deus, então, não fica preso à lama humana, Ele vence. A misericórdia de Deus é a Sua vitória contra todo o mal. O mal – a morte – não o retém. Jesus Ressuscitou, ou seja, Ele Se sujeita ao mal dos homens na Cruz, assume a morte, mas Ele os transformou em bem maior. Transformou a morte em vida, o mal em amor, a ofensa em perdão. Em Sua misericórdia, Ele vence o mal, não o destruindo, mas fazendo algo muito mais extraordinário: transformando-o em bem maior. O Papa Francisco na Bula “O Rosto da Misericórdia”, diz: “É próprio de Deus usar de misericórdia; nisso se manifesta de modo especial a Sua onipotência”. Santa Teresinha entendeu isto: crer na misericórdia é entender que a onipotência está a nosso favor. A nós basta confiar.
A volta do filho pródigo na parábola de Jesus (cf. Lc 15, 11-32) é linda; ela nos fala da misericórdia de Deus. O pai está esperando o filho, ou seja, o pai é ávido por ser misericórdia. Ele não só espera o filho, mas quer a oportunidade de amar. Quando o filho volta, emporcalhado (comia com os porcos), sujo e fedendo, o pai o abraça, misturando-se em sua sujeira e fedor. Contudo, o pai o reveste de vestes novas, sandálias nos pés e anéis nos dedos, ou seja, o pai o resgata e o faz novamente filho. Isso é pura misericórdia de Deus.
Infelizmente, na moral permissiva em que vivemos, mesmo dentro da Igreja, tem se identificado a misericórdia com a mera compaixão. Nesse caso, Deus é muito bondoso, mas é fraco. É fraco porque, no fundo, o mal é tão forte e imperativo na vida, na carne das pessoas, na cultura dos homens, que só resta a compreensão e a tolerância. Embora, com capa uma capa de humanismo, na verdade é uma concepção derrotista. No entanto, essa concepção é manca, porque a bondade de Deus não para na Sua compaixão, mas se consuma, se plenifica na Sua Onipotência, e é em Sua Onipotência que Deus vence o mal. Do contrário, o pai, na parábola, teria ficado eternamente abraçado ao filho emporcalhado, e a parábola terminaria aí.
Santa Teresinha se descobriu a “cantora das misericórdias de Deus”, ou seja, a misericórdia de Deus passou a habitar sua alma. Quem é assim descobre dentro de si o Deus invencível, que nenhuma mal, dentro de si ou fora, no mundo, “pode me separar do amor de Deus” (Rm 8,38).
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Pantokrator
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