O livro do Gênesis nos conta que o povo hebreu, descendente de Abraão, foi viver no Egito após uma fome que se alastrou por toda a região. Acontece que o povo acabou ficando por lá. No início, os hebreus foram bem recebidos pelo faraó, que possuía uma dívida de gratidão com um dos hebreus, José. No entanto, muitos anos depois, outro faraó assumiu o poder e já não era tão generoso quanto o anterior. Aqueles hebreus tinham se multiplicado muito e passaram a ser vistos como uma ameaça. Foi então que os egípcios escravizaram o povo de Deus, forçando-o a trabalhar de maneira desumana e negando-lhe a liberdade.
O povo sentia saudades de sua antiga terra, mas já não tinha autorização para voltar. Entre choros e gritos de dor, os hebreus clamaram pela ajuda de Deus. E, como sempre, Deus escutou a oração do Seu povo. A história é conhecida por todos: após uma série de eventos milagrosos, o Senhor conduziu Moisés, abriu o mar ao meio e ajudou o povo a fugir da escravidão.
Não há dúvidas de que esses fatos realmente aconteceram. Porém, além da importância histórica, a Igreja sempre viu um significado simbólico nesse evento: a saída do Egito é uma prefiguração da nossa história de salvação. Perceba a semelhança: o povo hebreu era escravo do faraó, assim como nós éramos escravos do pecado. Deus enviou a eles um libertador (Moisés), o que também ocorreu conosco (Jesus). A libertação antiga se deu por meio da água (do Mar Vermelho) e continua ocorrendo por meio da água (do batismo). Foi necessária uma grande mortificação no deserto para chegar à Terra Prometida, da mesma forma que precisamos da mortificação para alcançar o Céu.
A INGRATIDÃO DO POVO LIVRE
No entanto, como é difícil agradar ao ser humano! Apesar de todos os sinais realizados por Deus, de todas as pragas lançadas contra os inimigos e de toda a glória da fuga pelo meio do mar, o povo começou a demonstrar uma tendência preocupante: passou a sentir a tentação de romantizar a vida antiga no Egito.
Sim, por incrível que pareça, o mesmo povo que havia sido escravizado por tantos anos agora olhava para trás e insinuava que tinha uma boa vida no país estrangeiro. E o pior de tudo: criaram o hábito de reclamar de Deus — o mesmo Deus que os havia libertado com mão poderosa.
As primeiras reclamações não demoraram muito a surgir. Apenas três dias após terem passado pelo meio do mar, os ingratos começaram a murmurar contra Moisés, exigindo uma água diferente (Ex 15, 22-24). Note que os eventos grandiosos da libertação ainda estavam frescos na memória, mas isso não parecia ser suficiente para fazer o povo confiar.
Mais adiante, vendo que o povo estava com fome, o Senhor concedeu um alimento especial que descia do céu todas as manhãs (o maná). Ou seja, mais um milagre realizado bem diante de todos! Mas o povo ficou satisfeito? Infelizmente, não…
Em uma das passagens mais emblemáticas deste período no deserto (Nm 11, 5), os hebreus começaram a reclamar do próprio maná cedido por Deus. Eles se reuniram e começaram a lamentar o fato de que, no Egito, tinham outros alimentos, como, por exemplo, cebolas. Isso mesmo: eles preferiam as cebolas do Egito à libertação e aos milagres estupendos realizados pelo Deus Altíssimo.
NÓS TAMBÉM PORTAMOS ESTE VÍRUS DA INGRATIDÃO
Olhemos para o mundo alguns milhares de anos depois e veremos como as coisas não são tão diferentes. A vida de pecado é uma verdadeira escravidão, que nos mata aos poucos, mina nossas forças e suga a alegria de viver. Algumas pessoas se entregam aos maiores vícios e prazeres em busca de felicidade, mas só encontram frustração. O diabo promete tudo, mas não entrega nada.
Mas Deus vem em nosso socorro. O próprio Verbo Eterno se encarnou e morreu numa cruz para nos dar uma verdadeira libertação e nos conceder um caminho certo para a felicidade eterna. O mesmo Jesus também nos dá um alimento do céu — que não é mais aquele simples maná, mas o Seu próprio Corpo e Sangue na Eucaristia.
Acontece que, antes da Terra Prometida, é preciso passar pelo deserto. Depois da conversão, os nossos problemas não estarão todos resolvidos; ao contrário, é nesse momento que começa o caminho de purificação e crescimento nas virtudes. Não é fácil, nem rápido, mas Jesus já nos alertou que a porta do Céu é estreita.
Muitos de nós temos a tentação de romantizar o “Egito” da vida antiga, ou seja, de fazer comparações a respeito de tudo o que “perdemos”, esquecendo-nos completamente de que, naquela época, vivíamos em uma escravidão cruel. O maligno tenta nos convencer de que precisamos desesperadamente daquelas “cebolas do Egito” — quando, na verdade, o nosso Deus vale muito mais do que qualquer tipo de cebola.
É um erro — e um perigo — muito grande dialogar com esse tipo de tentação, como crianças que estão “presas” dentro de casa e veem, pela janela, os outros brincando lá fora. Isso é uma ilusão, e como somos suscetíveis a cair nela!
Nosso olhar deve estar voltado para a frente. Jesus nos lembra: “Aquele que põe a mão no arado e olha para trás não está pronto para o Reino de Deus” (Lc 9, 62). Depois do deserto virá a Terra Prometida — que é infinitamente melhor do que mil Egitos!
O deserto é apenas uma passagem e dura somente um tempo. O Senhor nos garante que preparou para nós uma terra nova e diferente, onde “corre leite e mel” (Ex 3, 8). Aquela vida antiga de pecados não é digna de ser lembrada ou admirada. Quando chegarmos ao glorioso Céu, veremos o quanto eram pobres e sem valor aquelas velhas “cebolas do Egito”.
Rafael Aguilar Libório
Consagrado da Comunidade Católica Pantokrator