Viver na verdade

“O que é a Verdade?” (1), perguntou Pilatos a Jesus. Jesus permanece em silêncio. Em Seu silêncio está a resposta: Ele mesmo, o Cristo, é a resposta, Ele é a Verdade, conforme havia dito: “Eu sou o caminho a verdade e a vida” (2). Somente quem têm os olhos da fé é que pode enxergar a resposta.

Essa pergunta e essa resposta são perenes na história da humanidade: Jesus continua diante dos homens dando Ele mesmo como a resposta da Verdade. Só aqueles que têm olhos de fé é que encontram a resposta.
O que significa resposta nesse contexto? Resposta significa o saciar profundo da pergunta da existência que fazemos todas as vezes que buscamos o sentido de nossas vidas. A Verdade não é uma idéia morta que dá um saber das coisas e que passa, mas é o fundamento da pergunta da existência, é a resposta eterna, que nunca teve início nem terá fim, pois é a resposta do Ser, Daquele Que É, daquele que é o princípio perene de toda a existência.
A Verdade não é um privilégio dos teólogos ou filósofos, mas dos pequeninos (3), intelectuais ou simples, mas que sabem acolher a Verdade em suas vidas e ser pautados por ela. Pautamos nossas vidas na Verdade quando conformamos nossas vidas a Cristo, quando somos diante de Deus aquilo que somos e quando vivemos na verdade.

Quando conformamos
nossa vida a Cristo

Os Padres da Igreja ensinam que o Pai, ao criar o homem, olhou para o Filho. Assim, o Filho é o modelo, é Verdade da existência humana. Por isso Ele diz: “Sem mim nada podeis fazer” (4). A vida humana se identificou mais ainda com o Filho quando Ele se encarnou, tornando-se homem para a salvação do homem: “Cristo manifesta plenamente o homem ao próprio homem e lhe descobre a sua altíssima vocação… Como a natureza humana foi nele assumida, não aniquilada, por isso mesmo também foi em nós elevada a uma dignidade sublime. Com efeito, por Sua encarnação, o Filho de Deus uniu-Se de algum modo a todo homem. Trabalhou com mãos humanas, pensou com inteligência humana, amou com coração humano” (5).
Por isso a identidade e a dignidade do homem estão condicionadas à Verdade de Cristo. O homem só encontra sua vocação de ser humano em Cristo; do contrário, modela-se aos parâmetros subumanos dos animais. Em Cristo está a dignidade do homem; sem Cristo, sua dignidade é destruída e o valor da vida humana se reduz a condicionamentos financeiros, científicos, políticos etc.
Nesse sentido, Cristo revela-Se a Verdade da humanidade. Mas é preciso deixar que Ele seja a Verdade da minha humanidade, e Ele o será, quanto mais nos conformarmos a Ele. Ele não é um mestre que comunica verdades, mas o mestre que é a própria Verdade e, por isso, segui-lo não é assumir suas idéias, mas é transformar-se n’Ele. Esse discipulado de Cristo tem seu cume na Eucaristia e por isso Ele Se deu em alimento, pois alimentando-nos de Sua carne nos tornamos Ele mesmo.
“Jesus, na passagem evangélica, diz: ‘Eu sou o pão vivo, descido do céu… Minha carne é verdadeira comida… Quem come minha carne tem vida eterna’. Aqui o alimento não é uma simples coisa, mas uma pessoa viva. Tem-se a mais íntima, ainda que a mais misteriosa, das comunhões. Observemos o que acontece na natureza, no âmbito da nutrição. É o princípio vital mais forte que assimila os menos fortes. É o vegetal que assimila ao mineral; é o animal que assimila o vegetal. Também nas relações entre o homem e Cristo se verifica essa lei. É Cristo quem nos assimila; nós nos transformamos n’Ele, não Ele em nós. Um famoso materialista ateu disse: ‘O homem é o que come’. Sem saber, ele deu uma definição ótima da Eucaristia, graças à qual o homem se converte verdadeiramente no que come, isto é, no corpo de Cristo!”(6).
Quando somos diante de Deus aquilo que somos

“O homem é o que é diante de Deus e nada mais”, dizia São Francisco de Assis. Viver a Verdade é também aceitar-se com a sua verdade diante de Deus. Muitos – e quantos – crêem em Cristo, querem se submeter a Ele, mas não o fazem não por uma crise de fé, mas por uma crise de auto-aceitação. É mentiroso aquele que diz que não tem pecado (7); e todas as vezes que mascaramos nossas misérias estamos na mentira. Por mais que se volte para Cristo como Verdade, essa Verdade não traz sentido porque ela toca em uma mentira. A força transformadora da Verdade de Cristo só é fecunda se tocar naquilo que verdadeiramente somos, por pior que sejamos, pois, do contrário, é como uma pólvora: se molhada não tem efeito explosivo. Nossa fé, se molhada em nossa mentira, não provoca nada, é estéril.

Quando vivemos na veracidade

A veracidade é a coerência de nossos gestos e palavras com a verdade. Do contrário, ofendemos a verdade através de várias atitudes:
* Falso testemunho e perjúrio. Uma afirmação contrária à verdade feita publicamente, reveste-se de gravidade particular: perante um tribunal, é um falso testemunho; quando mantida sob juramento, é um perjúrio.
* Juízo temerário: aquele que, mesmo tacitamente, admite como verdadeiro, sem prova suficiente, um defeito moral do próximo;
* Maledicência: quando alguém, sem motivo objetivamente válido, revela os defeitos e as faltas de outrem a pessoas que os ignoram;
* Calúnia: quando alguém, por afirmações contrárias à verdade, prejudica a reputação dos outros e dá ocasião a falsos juízos a seu respeito.
* Lisonja, adulação ou complacência: estimular e confirmar outrem na malícia dos seus atos e na perversidade da sua conduta. A adulação é uma falta grave, gerar cumplicidade com vícios ou de pecados graves. Nem o desejo de prestar um serviço nem a amizade justificam a duplicidade de linguagem
• Ironia que visa depreciar alguém, caricaturando, de modo malévolo, um ou outro aspecto do seu comportamento.
• A mentira é a ofensa mais direta à verdade. Mentir é falar ou agir contrariamente à verdade, para induzir a erro. Lesando a relação do homem com a verdade e com o próximo, a mentira ofende a relação fundamental do homem e da sua palavra com o Senhor (8).

O homem do nosso tempo é alguém agnóstico. O que é isso? É aquele que afirma a impossibilidade de se conhecer a Verdade, por julgá-la inacessível. Por que isso? Porque o homem se libertou da Igreja no iluminismo do século XVIII e passou a buscar uma verdade sem a Igreja e, depois, sem Deus mesmo. Mas, o que adveio? Só catástrofes humanas, como o liberalismo opressor surgido após a Revolução Francesa, os regimes totalitários, que assassinaram milhões de pessoas, como o comunismo soviético e o nazismo alemão, duas guerras mundiais etc. Deus, o Fim último, o absoluto, parece inacessível; então, só nos resta o imediato, o relativo. Mas, para se justificar o seguimento do relativo e imediato, o homem absolutizou a si mesmo, pois sendo ele a própria verdade, pode “legalizar” como bem absoluto aquilo que é relativo e passageiro. Assim, o passageiro, que outrora era submisso ao eterno, ganhou status de fonte de felicidade, como o sucesso, o prazer, os bens materiais etc. O homem criou um reino sem Deus que é regido por ele mesmo, segundo o que o homem, através do consenso democrático, define. Assim, a moral saiu de moda e as condutas são regidas pelas éticas humanas, definidas por plebiscitos, Conselhos, Parlamentos e Tribunais de Justiça.
Diante disso, cabe a nós, que cremos na Verdade, anunciá-la destemidamente, como quem porta a resposta. O mundo de hoje é Pilatos aflito que continua perguntando pela Verdade. O silêncio de Cristo foi Sua veemência diante de Pilatos porque Ele era a resposta. Nossa veemência deve ser anunciá-lo e testemunhá-lo com ardor, coragem, audácia profética e autenticidade, na certeza de que temos a resposta, que é Cristo, a Verdade.

(1) Jo 18,28.
(2) Jo 14,06.
(3) Cf. Lc 10,21.
(4) Jo 15,5.
(5) CONCÍLIO VATICANO II, Constituição Pastoral Gaudium et Spes, n. 22.
(6) Raniero Cantalamessa, Homilia da Solenidade de Corpus Christi.
(7) I Jo 1,8.
(8) Cf. Catecismo da Igreja Católica, 2468 e 2475-2483.

André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Católica Pantokrator

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