Caritas in veritate e nosso contexto cultural

A terceira Encíclica de Bento XVI, Caritas in veritate, pode ser facilmente confundida com uma compilação de boas intenções da Igreja, sem muita relevância para a vida prática das pessoas. Isso acontece porque nossas categorias mentais estão longe daquelas do cristianismo, muito mais próximas do secularismo moderno. O primeiro passo para entender a encíclica, portanto, é recuperar algumas dessas categorias e entender seu impacto sobre o nosso modo de pensar.


O resgate da subjetividade

No mundo moderno, aparentemente o subjetivismo e o relativismo sufocaram a objetividade da verdade. Tudo parece ser opinião ou sensação subjetiva. Mas, no fundo, é um mundo em que não existe lugar para a verdadeira subjetividade. Somos levados a acreditar que nos movemos por determinações materiais, como no caso da mentalidade de classe marxista; ou por uma racionalidade econômica que não pode ser contrariada sem conseqüências trágicas; ou mesmo por uma instintividade biológica incontrolável. Em qualquer um dos casos, não existe – no fundo – espaço para a liberdade e para a responsabilidade humana. As circunstâncias nos determinam e condicionam, ao invés de nos pro-vocar, nos chamar a assumir nossa missão e nosso lugar no mundo.
Elliot, nos Coros de “A rocha”, já dizia que os homens sonham construir sistemas tão perfeitos que tornem desnecessário sermos bons. Mas um mundo assim seria de autômatos, não de pessoas. Em busca desses sistemas perfeitos, o homem moderno tem tentado construir Estados planificados, mercados auto-regulados e sociedades desumanas e incapazes de atingir o pleno desenvolvimento da pessoa. Ao chamar a atenção para o papel da liberdade e da responsabilidade pessoal na vida social e econômica, o Papa resgata o autenticamente humano. Este não é um mundo de autômatos e, sem o compromisso ético de cada um, não é possível construir o bem comum.

O amor como força que age no mundo

A partir daí, podemos compreender a verdade sobre o amor e viver o amor na verdade. Para a mentalidade moderna, o amor é um sentimento, uma sensação, que tem valor apenas em nossa vida privada. Continuando a reflexão já iniciada em Deus caritas est (obrigatória para a correta compreensão de Caritas in veritate), Bento XVI mostra que o amor é uma força moral e um critério de juízo, de discernimento, que orienta a vida da pessoa não só na esfera privada, mas também na pública. O amor (ou seu oposto, a falta de amor) é incidente na vida social, na política e na economia. Apenas uma razão reduzida pelo pragmatismo e pelo utilitarismo não consegue perceber essa incidência. Mas é Cristo, com seu gesto inicial de amor gratuito por nós, com seu sacrifício, que nos mostra toda a força e a grandeza do amor, todo o poder de sua gratuidade.

A solidariedade que nasce do amor

Nas Ciências Sociais, a solidariedade recebe várias classificações. Existe a solidariedade mecânica, a orgânica, a de classe. Mas, fiéis ao pressuposto mecanicista de qualquer ciência, todas as categorias supõem o interesse egoísta dos indivíduos e a sua dependência última das determinações da vida material.
Algumas vezes somos solidários com os que são iguais a nós – e assim nos protegemos dos diferentes. Outras vezes somos solidários com os que são diferentes – como o produtor pode ser solidário com o consumidor – porque eles nos dão o que nos falta. Nenhuma dessas solidariedades é aquela que nasce do cristianismo e do amor. Esta solidariedade, tão antiga, mas sempre nova e surpreendente, nasce da gratuidade e da experiência de termos sido amados primeiro.
O problema, dirá Bento XVI, é que a democracia moderna e a economia de mercado precisam deste último tipo de solidariedade. Se as únicas formas de solidariedade forem aquelas motivadas pelo interesse, mais cedo ou mais tarde os interesses dos poderosos ou a própria irracionalidade dos mecanismos de mercado se tornarão mais importantes do que a busca do bem comum.
Não se trata de uma crítica moralista à “vida como ela é”, do puxão de orelha que um velho bonzinho dá nos meninos levados, dizendo para eles serem bons. É a denúncia da ilusão do individualismo radical que orienta nossa vida social. Mas, ao mesmo tempo, é uma proposta objetiva – e aqui está sua força. Os cristãos não são aqueles que dizem que todos devem ser bonzinhos, mas aqueles que dizem de onde nasce a bondade e como ela se realiza no mundo.

A solidariedade precisa da subsidiariedade

O caminho através do qual esse amor e essa solidariedade se tornam concretos e organizam a vida da sociedade é aquele das obras, que sempre foram fundamentais na vida da Igreja. As obras que nascem da caridade são as mais variadas possíveis. Tradicionalmente, prestam serviços que atendem às necessidades da população – particularmente daqueles mais pobres: hospitais, escolas, creches etc.
A Encíclica irá lembrar, porém, que essas obras não são apenas assistenciais. Elas também acontecem sob a forma de empreendimentos voltados à atividade econômica e ao mercado – mas que acontecem inspirados pela solidariedade e pela colaboração fraterna. Por isso o Papa enfatizou, na audiência em que apresentou Caritas in veritate, que a solidariedade anda junto com a subsidiariedade.
O princípio da subsidiariedade, tão pouco conhecido no Brasil, poderia ser expresso também como o princípio do protagonismo da pessoa. Ele diz que o Estado deve se organizar para ajudar a pessoa a agir como protagonista na vida social, usando sua criatividade e a solidariedade para resolver os problemas concretos. O oposto da subsidiariedade é a centralização das decisões e da ação nas mãos do Estado. Freqüentemente, no Brasil, acabamos pedindo esse Estado não-subsidiário, acreditando que reivindicar que o Estado faça é a única forma de salvaguardar os direitos de cada cidadão.
Mas se for assim, as ações nascerão de uma obrigação do Estado e não da consciência do valor do amor. Tais ações, motivadas pela obrigatoriedade institucional, muitas vezes não atendem às necessidades da população, são mal dirigidas e não educam para a solidariedade e a co-responsabilidade. Por tudo isso, o amor e a solidariedade precisam da subsidiariedade para se constituir em forças motrizes de uma sociedade mais justa e mais humana.

Educação, religião e defesa da vida

Todo esse caminho, contudo, é um processo educativo da pessoa. Não pode ser feito por leis ou sistemas normativos apenas. Essa é sua força e sua fragilidade. Por isso, ele envolve todas as dimensões da pessoa. As religiões são importantes construtoras de solidariedade, na medida em que ajudam a pessoa a se reconhecer amada por Deus e a viver um laço de amor com seus irmãos. Um Estado que queira realmente construir uma sociedade mais solidária e mais fraterna não pode censurar ou combater as religiões. Contudo, as manifestações religiosas devem ser avaliadas e discernidas a partir dos critérios da verdade e do amor para evitar que, em nome delas, cresçam ódios, ressentimentos e condutas contrárias ao bem comum e à dignidade da pessoa.
Também não se pode esperar que um Estado que não garante o direito à vida dos mais fracos ajude na construção de uma sociedade solidária. O amor, para ser verdadeiro, tem que se estender a todos, em todas as situações. Assim, a defesa da vida é um passo para a construção de uma solidariedade que atinge todos os aspectos da vida da sociedade, até mesmo os mecanismos de mercado e a atividade econômica.

O desenvolvimento integral

Este é o caminho para aquilo que a Encíclica apresenta como o objetivo principal da vida social: o desenvolvimento integral. Citando a famosa Encíclica de Paulo VI, Populorum progressio, Bento XVI irá propor que toda a vida social se orienta para o progresso de todos os homens e do homem todo.
O desenvolvimento deve ser universal – atingindo a todas as pessoas, sem exceção – mas também deve atingir a todas as dimensões da pessoa – material, afetiva, social, espiritual.
Quando olhamos o percurso que fizemos para chegar até esse último aspecto, podemos compreender com mais clareza que esse conceito de “desenvolvimento integral” não é uma abstração, mas o reconhecimento daquilo que a Igreja e a comunidade cristã representam concretamente na vida de cada um de nós. Este é o anúncio e a riqueza de Caritas in veritate…

Francisco Borba Ribeiro Neto
Sociólogo e Coordenador de Projeto do Núcleo Fé e Cultura – Puc – SP

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