O Deus de Israel é um Deus ciumento, ele tem por seu povo um amor ciumento. Por mais estranho que isso possa parecer, é uma realidade bíblica, Deus é o El Qanna[1]. Também o Novo Testamento fala do ciúme de Deus em Tiago 4,5b; 1Coríntios 10,22b. Estamos diante de um antropomorfismo bíblico, um recurso que os autores bíblicos usam, pelo qual colocam em Deus características humanas, mas também materiais (fogo, rocha, leão, águia). Mas os grandes antropomorfismos estão na linha dos sentimentos humanos, quando se dão a Deus sentimentos que são humanos (ira, ciúme, arrependimento etc). E isso é legítimo? Claro que sim, isso está na Palavra de Deus, mas vamos entender melhor. Para entender essas realidades humanas postas em Deus, é preciso lembrar que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus. Se o homem é imagem e semelhança de Deus, existem nele coisas que expressam realidades próprias de Deus. Então é possível, sim, encontrar no homem coisas que são da realidade de Deus.
Ciúme: um antropomorfismo
Mas é preciso entender que o antropomorfismo é uma linguagem simbólica. Um símbolo é uma orientação para algo que vai além dele mesmo, ou seja, o símbolo é imagem de uma realidade que não é ele. A realidade é outra coisa. O antropomorfismo, enquanto linguagem simbólica, é legítimo. Mas é preciso entender que a realidade mesma transcende o símbolo. A realidade está além do símbolo, ela é muito maior que o símbolo. Por exemplo, o crucifixo, nos orienta para a Cruz de Cristo, e por isso tem uma graça e autoridade, porém, a Cruz é a plena realidade.
Falar de ciúme em Deus é, a partir de uma realidade humana, aproximar-se de uma realidade divina. Se isso é válido, por outro lado, as imperfeições humanas não podem ser transpostas a Deus. Deus é perfeito, e nele não encontra mal algum [2]. Então, como entender o ciúme em Deus?
Ciúme: amor do Deus Uno
“Não adorarás nenhum outro deus, porque o nome do Senhor é “Ciumento”. Ele é um Deus ciumento” [3]. Deus é Uno e único. O Deus de Israel exige que Seu povo reconheça essa sua condição exclusiva na relação com Ele. Ele o faz, não porque é possessivo, ou seja, quer o outro somente para si, visando seus interesses e necessidades. Deus exige exclusividade, manifesta seu amor ciumento, porque qualquer idolatria do homem significa a morte do homem. Deus sabe que somente n’Ele o homem encontra vida, salvação e felicidade. Fora d’Ele tudo são trevas. Mais ainda, essa posse de Deus não visa a Si mesmo, porque, sendo absoluto, nada pode somar-se a Ele, nada O completa. Deus é plenamente satisfeito n’Ele mesmo, o homem nada pode acrescentar a Deus. Toda relação de Deus com o homem é pura gratuidade de amor, porque o único movimento de Deus é de Si para fora de Si. O homem nunca poderá retribuir o amor de Deus; e nada que existe pode fazê-lo, simplesmente porque tudo o que existe, existe porque recebe d’Ele o dom de existir.
Ciúme: zelo de Deus
Nesse sentido, muito mais que exclusivista, o ciúme de Deus é zelo. Deus quer exclusividade porque é zeloso do homem. Tudo o que está fora de Deus é treva, e exigir que o homem permaneça n’Ele nada mais é do que o zelo de preservar o homem na Sua luz. O ciúme é o zelo de um Deus que não nos abandona na nossa existência, ao contrário, cuida de cada detalhe da vida do homem: “Os fios de vossas cabeças estão contados”[4]. Deus desce ao mínimo de nossas vidas, nada passa despercebido a Ele. Seu Zelo é essa presença intensa e constante de quem cuida dos detalhes. Nada é esquecido e por isso, a memorável profecia: “Pode uma mulher esquecer-se daquele que amamenta? Não ter ternura pelo fruto de suas entranhas? E mesmo que ela o esquecesse, eu não te esqueceria nunca” [5].
Ciúme: Amor Eros em Deus
Mas o amor ciumento de Deus não pára aqui. O ciúme de Deus nos revela mais ainda sobre Ele. O ciúme é uma faceta de uma realidade em Deus que Bento XVI evidenciou em sua primeira encíclica, Deus Caritas est (DCE) – Deus é Amor – em que foi bastante ousado. Inclusive, segmentos tradicionais da Igreja criticaram Bento XVI por isso. Acharam que ele estava extrapolando as medidas, porque, no início da encíclica, colocou em Deus o amor Eros. Bento XVI foi muito ousado, porque o amor Eros sempre foi entendido como um amor imperfeito, em contraposição ao amor ágape. Tanto que o amor erótico – o Eros, na linguagem bíblica, quase não aparece, porque, na verdade, o Antigo Testamento é escrito em hebraico, e nem se tem uma expressão correspondente e bem adequada para isto no hebraico. Por outro, lado o amor erótico é muito presente na Sagrada Escritura, tanto é que o livro do Cântico dos Cânticos celebra esse amor erótico. Na encíclica, o Papa mesmo diz que “os profetas Oséias e Ezequiel descreveram essa paixão de Deus por Seu povo com arrojadas imagens eróticas”[6]. Em contrapartida, a expressão do amor agápico, esta sim, é abundante na Escritura, sobretudo no Novo Testamento porque agapō vem do grego, e o Novo Testamento é quase todo escrito em grego.
O amor Eros se refere ao amor ascendente, o amor de possessão, de desejo, de paixão. É o amor que busca coisas grandes. O amor Ágape é o amor descendente, o amor de renúncia, é o amor de oblação, de gratuidade. Na encíclica, Bento XVI questiona: o amor Eros é uma coisa e o amor Ágape é outra? Na própria encíclica, ele vai discursando e chega à seguinte conclusão: “No fundo, o amor é uma única realidade, embora com distintas dimensões” [7]. Portanto, se Deus é amor, Ele também é Eros: “Ele ama, e este Seu amor pode ser qualificado sem dúvida como Eros, porque, no entanto é totalmente ágape também” [8].
O que Bento XVI quer dizer com isso? Quer dizer que em Deus há um amor de desejo, um amor daquele que quer possuir, há um amor com a força do amor erótico. Em Deus não existe apenas aquele amor oblativo, gratuito e “perfeito”, por assim dizer, mas há também esse amor de possessão. O amor erótico não é mau e não pode ser mau. Se disséssemos que o amor erótico é mau, estaríamos dizendo que ele não está em Deus, porque o que não está em Deus não pode ser bom. Então, estaríamos dizendo que a paixão entre o homem e a mulher é má. Mas Ele criou o amor entre o homem e a mulher; isso colocaria em xeque a relação entre homem e mulher. Fica claro que o amor erótico é uma realidade em Deus; portanto, podemos entender Deus como este Deus que ama, que tem desejo, que tem paixão, que tem possessão, que tem esta paixão esponsal pelos Seus.
É surpreendente, mas é real! O Deus que criou todas as coisas e as tem sob Seus pés nos ama até o ciúme. O salmista já exclamava “Quem somos nós, Senhor, para que Te importasses conosco?” Sl 8,5. Mas, Deus, em seu amor incomparável, deseja o homem até o ciúme. Em nenhuma religião, em nenhuma filosofia fala-se de um Deus que se importa com o homem dessa forma. Mas o Deus de Israel é um Deus ciumento, um Deus que ama, e ama até o ciúme. Deseja o homem para Si, numa posse incomunicável. Não aceita partilhar o amado com ninguém. Quer o amado só para Si, tendo por ele um amor devorador. E o amado é o homem – somos nós. Se existimos, é porque antes Deus desejou-nos para Si. Quis ter-nos para Ele. Quem já foi tão desejado?
Amor ciumento da Trindade
Deus tem pelos homens um amor devorador. E Ele o tem como Trindade: o Pai nos devora como filhos, o Esposo devora a Igreja Sua esposa, o Espírito devora o amigo íntimo, o homem. Que pai, num acesso de paixão, não gostaria de colocar o filho dentro de si? Que Esposo nunca quis devorar sua amada? Que amigo nunca se entusiasmou tanto que quase machucou o amigo num forte abraço? “Se vós, pois, que sois maus, sabeis dar boas coisas aos vossos filhos…” [9]. Se o amor que temos pelos nossos filhos é chamado de pouca coisa por Jesus porque somos maus, então, com que paixão não nos ama Aquele que é Bom?!
Eucaristia: plenitude do amor ciumento de Deus
Como Deus nos devora, nos penetra e nos transforma? Na Eucaristia, pois ela é a plenitude desta plena união e posse. Deus quer nos possuir de tal maneira, que Ele quis estar em nós. Por isso, diz Bento XVI, na referida encíclica: “A imagem do matrimônio entre Deus e Israel torna-se realidade de um modo anteriormente inconcebível: o que era um estar na presença de Deus torna-se agora, através da participação na doação de Jesus, comunhão no seu corpo e sangue, torna-se união. A « mística » do Sacramento, que se funda no abaixamento de Deus até nós, é de um alcance muito diverso e conduz muito mais alto do que qualquer mística elevação do homem poderia realizar”[10].
E, como dizem os Padres da Igreja: “eu como a vaca, e a vaca se transforma em mim. Na Eucaristia, dá-se o inverso, eu ‘como’ Cristo, mas sou eu que me transformo em Cristo”. Cristo me transforma. Isto, para dizer que Cristo tem uma paixão tão grande por nós que Ele vem a nós, Se faz alimento por nós, para nos possuir plenamente. Isso é uma expressão radical da paixão d’Ele, do amor erótico. A Eucaristia é uma expressão radical do amor erótico de Deus pelo homem, da possessão, do domínio pleno. Deus fez o que não podemos fazer em nossos amores: Ele transforma o amado n’Ele. Ele resolveu o “problema” da Sua paixão pelo homem na Eucaristia. O que nós não conseguimos fazer com os nossos amados, Deus faz com os amados d’Ele. A gente não pode, mas Deus tem o direito de entrar dentro dos homens por quem Ele é apaixonado e transformar o apaixonado n’Ele. Esse é o amor erótico em Deus; Ele tem essa força no Seu amor. Creio que é nesse sentido que podemos entender aquela ansiedade de Jesus “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco” [11].
Espírito Santo: Amor Devorador
“Ou imaginais que em vão diz a Escritura: Sois amados até o ciúme pelo Espírito que habita em vós?” [12]. Acredito que na intimidade da Pessoa do Espírito em nós é que se manifesta essa relação de ciúme de Deus por nós. O Espírito Deus toma posse do homem, o devora de forma transformadora: “Porque o Senhor vosso Deus é um fogo devorador, um Deus ciumento”. Dt 4,24 e ainda “Pois o nosso Deus é um fogo abrasador” [13]. Esse amor erótico em Deus não é uma paixonite inconsequente, ao contrário, é ação penetrante que transforma de tal forma o homem, que produz um “nascer de novo”. O homem nasce de novo como filho de Deus, identificado com o próprio Deus. Deus devora, mas não consome, transforma, mas mantém o homem em sua identidade pessoal livre. Creio que a imagem do livro do Êxodo, da sarça que arde mas não se consome, seja perfeita para ilustrar esse fogo devorador que envolve, penetra, transforma, mas não destrói, ao contrário, eleva, dignifica e produz liberdade na aquilo que toca: “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” [14].
Fidelidade é a única resposta
Diante dessa maravilha do amor de Deus, como não se sentir movido a viver numa fidelidade amorosa a Deus? Embora, como Igreja nossa fidelidade seja, em princípio, de uma amor feminino (deixar ser desejado, fazer-se belo na santidade, uma capacidade de acolher a vontade de Deus, ter por Deus uma relação de romance e construir com Ele uma “aventura” de santidade), Deus espera também uma fidelidade masculina (reconhecer e inebriar-se da beleza de Deus, lutar para conquistar as coisas de Deus, fazer de Deus a sua prioridade, construir um caminho de santidade). O fundamental é entender que a fidelidade a Deus não pode ser uma coisa fria, legalista. Ela é fruto do amor de Deus, que gera em nós amor a Deus. Quando se entende isso, supera-se toda falsa incompatibilidade entre a fidelidade a Deus e a imperfeição humana. Se fidelidade é amor, esse amor abraça todas as coisas, se abaixa até os fracos para eleva-los à estatura dos fortes.
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Católica Pantokrator
[1] Cf. Dt 4,24; 5,9; 6,15; Ex 20,5; Ex 34,14; Ez 8,3-5; nas traduções mais populares da Sagrada Escritura, como a da Ave Maria, o “Ciumento” aparece como “Zeloso”. Embora o zelo faça parte desse ciúme de Deus e afaste a estranheza do ciúme, empobrece a tradução.
[2] Cf. Tg 1,13
[3] Ex 34,14 – Tradução da TEB.
[4] Mt 10,30
[5] Is 49,15
[6] DCE 9
[7] DCE 8
[8] DCE 9
[9] Mt 7,11
[10] DCE 13
[11] Lc 22,15
[12] Tg 4,5
[13] Hb 12,29
[14] 2Cor 3,17
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