O século XV viu nascer aquilo que os historiadores chamaram de “Renascimento” e as curvas anatômicas de uma “Pietá” denunciam que o homem passava a ver a si mesmo, o mundo, com formas diferentes. Outrora, na Idade Média, as artes se voltavam para o divino; e as formas apontavam para o divino. Agora, nesse “renascer” da humanidade, o divino não é mais o fim último do homem, mas ele se volta para si mesmo. E as artes, expressas em formas que valorizam o corpo humano, mostram isso.
O desenrolar da história vai amadurecer esse processo com o surgimento do humanismo, do iluminismo, da revolução francesa, das novas formas de pensar com Descartes, Voltaire, a proclamação da morte de Deus de Nietzsche, o desenrolar dos sistemas capitalista e comunista, a psicanálise de Freud, culminando com as revoluções culturais que, em muito, partem de Woodstock e do famoso maio de 68 na universidade de Sorbonne, em Paris.
O produto dessa história é aquilo que se chama secularismo, ou seja, aquilo que vivemos hoje em nossa sociedade. Secularismo é a imposição daquilo que é profano sobre o divino, das coisas do mundo sobre o espírito. No secularismo, a fé e a espiritualidade só têm vez se não atrapalharem a minha vida no mundo, ou seja, são um conjunto de crendices e espiritualismos que nada têm a ver com os valores, comportamentos e a cultura.
Ouvimos frases, como “não importa a verdade; o importante é ser coerente consigo mesmo” ou “agora só resta rezar”, como se oração fosse um golpe de misericórdia, quando deveria estar no centro de nossos problemas; ou ainda “a mulher tem o direito sobre seu corpo para realizar o aborto”; mais ainda, “nossa empresa só patrocina eventos que não tenham cunho religioso”; ou ainda “a Igreja não tem nada a ver com esse assunto que é um problema de saúde pública”; ou “a única solução é matar os bandidos, distribuir seringa para os dependentes e camisinha para os jovens”. Essas expressões só denunciam o retorno ao paganismo e o retrocesso de uma sociedade que cada vez mais se desumaniza.
Na organização da sociedade, o secularismo proclama o laicismo do Estado, ao contrário da laicidade do Estado. Quanto se fala em laicidade do Estado, significa que não é regido por nenhuma religiosidade e, portanto, suas leis, suas ações não são religiosas. Isso é bom, pois Estado e Igreja são importantes para a sociedade, mas cada um tem papel diferente, havendo autonomia em relação ao outro. Mas a laicidade do Estado não impede que o povo leve sua consciência religiosa para os poderes públicos, e menos ainda, que as leis e ações do Estado não se enriqueçam com o imenso patrimônio de sabedoria e humanidade das religiões. No laicismo, o Estado assume a irreligião como sua opção religiosa, ou seja, uma fobia de tudo aquilo que é religioso. Nele, a religiosidade das pessoas pode até existir, mas no foro íntimo de suas consciências, nas sombras dos templos e no claustro de suas casas. A religiosidade não pode ter implicação nos valores da sociedade, nas leis, nas ações dos poderes públicos.
Na vida das pessoas, o secularismo levou ao individualismo. Cantava a banda Capital Inicial: “Procuramos independência, acreditamos na distância entre nós”. “Cada um na sua”, dizia a propaganda de cigarro, anunciando o individualismo e o imperativo do prazer e o do bem-estar, dando legitimidade aos vícios de toda ordem, em detrimento do sacrifício e da renúncia para alcançar as virtudes. Prazer e bem-estar passam a ser tão essenciais quanto respirar e comer.
Na ordem reinante do mundo, surge o “politicamente correto”, uma forma sutil da ditadura de algumas ideologias, destacando-se dentre elas o marxismo cultural, que em seu materialismo, anatematizou as palavras moral, castidade, verdade e religião.
Com esses ingredientes, o bolo que alimenta as pessoas no dia-a-dia são o consumismo desenfreado, o entretenimento vazio da mídia e dos videogames, o erotismo dominante e as químicas e alucinógenos, coisas que escravizam o homem no lamaçal da ignorância, alienação, impureza, dos vícios e da vida sem sentido.
Para entendermos algumas conseqüências do secularismo no dia-a-dia, faço uso da ajuda de um texto de Luis Fernando Veríssimo e de um frei dominicano:
“A cultura começa onde a natureza termina. Cultura é o refinamento do espírito. Televisão, no Brasil – com raras e honrosas exceções – é um problema: a cada semana que passa, temos a sensação de que ficamos um pouco menos cultos. A palavra hoje é ‘entretenimento’; domingo, então, é o dia nacional da imbecilização coletiva. Imbecil o apresentador, imbecil quem vai lá e se apresenta no palco, imbecil quem perde a tarde diante da tela. Como a publicidade não consegue vender felicidade, passa a ilusão de que felicidade é o resultado da soma de prazeres: ‘Se tomar este refrigerante, vestir este tênis usar esta camisa, comprar este carro, você chega lá!’ O problema é que, em geral, não se chega! Quem cede desenvolve de tal maneira o desejo, que acaba precisando de um analista. Ou de remédios. Quem resiste, aumenta a neurose.
Os psicanalistas tentam descobrir o que fazer com o desejo dos seus pacientes. Colocá-los onde? Eu, que não sou da área, posso me dar o direito de apresentar uma sugestão. Acho que só há uma saída: virar o desejo para dentro. Porque, para fora, ele não tem aonde ir! O grande desafio é virar o desejo para dentro, gostar de si mesmo, começar a ver o quanto é bom ser livre de todo esse condicionamento globalizante, neoliberal, consumista. Assim, pode-se viver melhor. Aliás, para uma boa saúde mental três requisitos são indispensáveis: amizades, auto-estima, ausência de estresse.
Há uma lógica religiosa no consumismo pós-moderno. Se alguém vai à Europa e visita uma pequena cidade onde há uma catedral, deve procurar saber a história daquela cidade – a catedral é o sinal de que ela tem história. Na Idade Média, as cidades adquiriam status construindo uma catedral; hoje, no Brasil, constrói-se um Shopping Center. É curioso: a maioria dos Shopping Centers tem linhas arquitetônicas de catedrais estilizadas; neles não se pode ir de qualquer maneira, é preciso vestir roupa de missa de domingo. E ali dentro sente-se uma sensação paradisíaca: não há mendigos, crianças de rua, sujeira pelas calçadas… Entra-se naqueles claustros ao som do gregoriano pós-moderno, aquela musiquinha de esperar dentista. Observam-se os vários nichos, todas aquelas capelas com os veneráveis objetos de consumo, acolitados por belas sacerdotisas. Quem pode comprar à vista, sente-se no reino dos céus. Se deve passar cheque pré-datado, pagar a crédito, entrar no cheque especial, sente-se no purgatório. Mas se não pode comprar, certamente vai se sentir no inferno… Felizmente, terminam todos na refeição pós-moderna, irmanados na mesma mesa, com o mesmo suco e o mesmo hambúrguer do McDonald’s… Costumo advertir os balconistas que me cercam à porta das lojas: ‘Estou apenas fazendo um passeio socrático.’ Diante de seus olhares espantados, explico: ‘Sócrates, filósofo grego, também gostava de descansar a cabeça percorrendo o centro comercial de Atenas. Quando vendedores como vocês o assediavam, ele respondia: ‘Estou apenas observando quanta coisa existe de que não preciso para ser feliz.’”
Mas não termina aí. Mais um “ismo” que surge é o relativismo religioso, talvez a mãe de todos os “ismos”. Tudo é relativo, cada um fique na sua, o importante é ser bonzinho, ajudar os outros, se possível, ser voluntário em alguma instituição de caridade. Para a religião não ficar fora, uma espiritualidade vai bem, mas nada que te faça ser desses bitolados. O bom mesmo é algo zen, ou, quem sabe, algo intelectual que te leve à casta dos puros.
Não importa o que seja a sua religião, mas tem que ser algo que respeita os outros. O politicamente certo é respeitar os outros, e terrível, pobre, alienado é defender um princípio religioso como verdadeiro, como se isso desrespeitasse alguém.
De que valem essas palavras? Servem para que estejamos de olhos abertos, pois o secularismo avança sorrateiramente afrouxando as consciências lentamente sem que se perceba. Quem diria há 50 anos que aceitaríamos as passeatas gays e o aborto? Hoje, no Brasil, o Supremo Tribunal Federal aprova a manipulação de embriões humanos congelados para fins de pesquisas, mas, observe bem, com ressalvas e mecanismos para que não se caia em ação antiética que possa levar a situações aberrantes, como a clonagem humana. E amanhã? O que será o progresso? Basta voltar-se para os países “avançados” para ver o progresso surgindo aos poucos: a Inglaterra acaba de permitir a clonagem humana, ainda sob algumas restrições, mas amanhã… Hoje no Brasil, rola no Congresso a CPI da Pedofilia, mas a Holanda, país modelo, acaba de aprovar um partido que tem como uma de suas bandeiras a legalização da pedofilia. Esse é o “progresso” inscrito em nossa bandeira? Esse é progresso que surge da desordem desse secularismo perverso. Não, o progresso de nossa bandeira é aquele que promove as virtudes, a cultura, a verdade, a justiça, a vida e a religião, progresso que vem da ordem daquilo que é verdadeiro, limpo e honesto, que por natureza vence a desordem e o retrocesso.
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Católica Pantokrator
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