Laicidade do Estado não é separação entre Igreja e Estado, mas a autonomia entre eles. Parece igual, mas é muito diferente. A separação isola, o que não é real nem saudável para essa relação complexa. A Igreja (e assim também a religião) não se isola do Estado porque seus ministros, como cidadãos, e mesmo as instituições religiosas, se regem pelas leis civis. O Estado, por sua vez, não é isolado da religião porque os seguidores dela são cidadãos que irão imprimir suas visões religiosas nos debates sociais, culturais e políticos, e tantas vezes assumirão funções civis importantes. Do contrário, seria retirado o direito de cidadania de um cidadão simplesmente porque ele é religioso. Isso seria um absurdo, a menos que o Estado se assuma confessional ateu, ou teocrático ateu, uma vez que a irreligião é, sim, uma opção religiosa. Autonomia parece o termo certo, pois significa autodeterminação, sem influência externa que se impõe, mas não significa que não pode haver contribuições externas, interações entre as realidades. Se sou separado, estamos distantes e, talvez rompidos. Se somos autônomos, somos independentes, mas podemos estar unidos, próximos, contribuindo um com o outro.
Isso é importante para a religião porque, “separada” do Estado de Direito, corre o risco de se tornar uma ameaça à sociedade. Por outro lado, um Estado que se isola da religião fará de si mesmo a religião, por dois motivos profundamente humanos: todos precisamos do transcendente e, se negarmos um divino, buscaremos outro; precisamos, seja individualmente ou no consenso da maioria, de uma referência superior e transcendente de fonte moral, ou de ideias, para organizar a polis, para reger o direito. E se não temos nenhuma, o Estado mesmo será a garantia dessa fonte transcendente, tornando-se o divino entre nós. Na prática, as ideias sacralizadas pelo Estado logo se tornarão ideologias; e as ideologias são crenças de utopias, são “religiões invertidas”, como afirma Russell Kirk.
Dessa forma, o Estado Laico entendido como separação acaba por trair o princípio da laicidade, porque, no fim, a religião e o Estado novamente se unirão, se tornarão um só. Um Estado assim está pronto para se tornar totalitário, simplesmente porque ele é absoluto no campo civil e religioso. Ele é tudo. Na sua aparência, será nobremente ateu, escondendo uma flagrante perseguição aos deuses, para que, no fundo, ele seja o único a ser seguido e adorado.
Tão preocupados em não repetir experiências passadas de teocracias1, ou mesmo repudiando as monarquias absolutas da época da Renascença, muitos transformaram laicidade em laicismo, que quer, este sim, isolar a religião do Estado, dando a ela um status de opção intimista. Não percebem que, assim, abrem a guarda para qualquer loucura dominante reger as massas democráticas, fazendo surgirem Estados totalitários, em que não há um senhor absoluto (o rei), mas o Estado mesmo é o absoluto, como aconteceu no fascismo, no nazismo e nos regimes comunistas da atualidade.
Não é exatamente isso que estamos vendo no Brasil? Instituições que deveriam garantir o direito tornaram-se o direito, fontes irrepreensíveis, que, se forem questionadas, convertem seus questionadores em réus de crime de lesa majestade por sacrilégio contra o “divino”. Ao contrário, queremos todos um Estado de Direito bem estabelecido, com instituições fortes e respeitadas, com uma democracia que caminha para uma maturidade estável, em que o humano e o divino, cada qual em suas autonomias, se completem para que, então, tenhamos um reino de verdadeira paz e justiça.
- Muito embora, no mundo cristão, rigidamente, os Estados não foram teocráticos, mas sim confessionais ou césaro-papistas, organizados de forma a tantas vezes caminhar na contramão de seu fundador, (conforme o famoso “Dai a César o que é de César”, Mt 22, 21) e de suas origens, segundo nos mostra Eric Voegelin, em “História das Ideias Políticas”
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Pantokrator