A Bíblia, ao falar do pecado, às vezes fala da iniquidade. Em alguns textos aparece a figura do iníquo. Essa expressão não tem um sentido preciso, mas às vezes se refere a uma condição enraizada de pecado e maldade: “Eis que eu nasci na iniquidade, e minha mãe já me concebeu no pecado” (Sl 50,7).
A iniquidade não é exatamente o pecado, mas o pecado enraizado na alma. A equidade se refere àquilo que é reto, correto; a iniquidade é algo retorcido nas raízes. Falando assim, pode parecer que a iniquidade seja um vício ligado ao pecado, mas não é vício, é bem mais que isso. No vício, tantas vezes a pessoa quer fazer o bem, por exemplo, o jovem cristão viciado em pornografia pode querer a castidade, mas seu vício o impede de ser casto. O iníquo, ao contrário, é aquele que tem uma opção pelo pecado e o tem como bem. Uma diferença entre o iníquo e o pecador, viciado ou não, é que ele, o iníquo, não tem vergonha do seu pecado. Por isso lemos em Sofonias 3,5: “O iníquo, porém, não sabe o que é vergonha”. Para o iníquo, o pecado é uma opção de vida, e tantas vezes sente orgulho em viver no pecado.
O iníquo no orgulho do seu pecado e tende a odiar o bem. Na Carta aos Tessalonicenses, São Paulo fala do “mistério da iniquidade”: “Porque o mistério da iniquidade já está em ação, apenas esperando o desaparecimento daquele que o detém” (2Ts 2,7). A iniquidade não é o ato moral do pecado, mas é um mistério. Existe uma ação profunda e poderosa do mal sobre a mente da pessoa. A pessoa passa a conceber as ideias de pecado como modelo positivo de comportamento pessoal e social. Na verdade, as ideias são o grande campo de batalha entre os anjos e demônios. Eles, sendo anjos, são puro espírito e por isso não lutam com espadas, lutam no plano das ideias. No homem, os demônios tentam implantar ideias enganadoras, que irão reger seus atos em direção à iniquidade. Tantas vezes a iniquidade está vinculada às ideologias que mergulham a mente da pessoa em concepções de pecado; e a pessoa passa a militar pelo mal.
Às vezes, na Bíblia, o iníquo aparece como uma figura apocalíptica dos finais dos tempos: “Porque primeiro deve vir a apostasia, e deve manifestar-se o homem da iniquidade, o filho da perdição, o adversário, aquele que se levanta contra tudo o que é divino e sagrado, a ponto de tomar lugar no Templo de Deus, e apresentar-se como se fosse Deus” (2Ts 2,4). Embora seja assim, no versículo 7, o autor bíblico diz que a iniquidade já está em ação. Ou seja, embora a iniquidade venha a crescer nos tempos finais, ela perpassa toda a história da humanidade, enganando e seduzindo para o mal.
Não sei se estamos nos últimos dias, mas estamos em tempos de iniquidade. Parece muito atual o texto de São Paulo a Timóteo: “Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si. Apartarão os ouvidos da verdade e se atirarão às fábulas” (2Tm 4,2). O iniquo é exatamente alguém que não suporta a sã doutrina da salvação e se atira às fábulas enganosas. E essa é uma característica do nosso tempo, em que é necessário defender valores que em outros tempos seriam inquestionáveis, invioláveis, como a vida intrauterina, a família, o amor humano, o significado da religião, dentre outras coisas.
Tantas vezes, uma maneira sorrateira de a iniquidade entrar nas consciências é confundir o significado de hipocrisia. É comum ouvir falar que antigamente todo mundo fazia errado e a sociedade era uma grande hipocrisia. O hipócrita não é tanto aquele que não vive conforme aquilo em que acredita; esse é simplesmente um fraco, quando muito, é alguém sem autenticidade e coerência. Hipócrita é aquele que demonstra viver aquilo em que não acredita, e por isso ensina o que não vive. O hipócrita dissimula sua verdadeira personalidade. Nessa confusão, a luta por viver conforme aquilo em que se acredita se tornou hipocrisia por suprimir os “verdadeiros” desejos. Honesto e autêntico se tornou aquele que é “sincero” e atende a seus ímpetos e instintos e passa a acreditar naquilo que sente. Quando a razão passa a ser regida pelos sentimentos, ela está pronta para ser retorcida, deformada e se tornar uma consciência iníqua. Daí a rebeldia vira honestidade; o feio se torna arte; a pornografia vira moda; o poder vira meta; a riqueza vira felicidade; o trabalho vira vida; sexo vira amor; o pudor vira falsidade; a liberdade vira permissividade…a religião vira obscurantismo.
A grande diferença entre o pecador e o iníquo é a humildade. O iníquo se tornou deus de suas ideias e de seus atos; e se orgulha de sua personalidade independente e autônoma. Ao contrário, o pecador, por pior que seja, mesmo se hipócrita, sente vergonha do seu pecado, e está sempre pronto para se arrepender e começar novamente. Talvez Judas e Pedro sejam a imagem dessa diferença. Ao se depararem com a plenitude do amor na Cruz, um se acusou, porque, no orgulho, o bem o confundiu e se tornou para ele “pedra de tropeço”. O outro descobriu sua fraqueza, se humilhou, pediu perdão e recomeçou. Que Deus nos socorra e livre esse mundo da iniquidade. E que, por pior que seja, que esse mundo seja ainda o mundo de Pedro.
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador Geral da Comunidade Católica Pantokrator