O mistério da quaresma

Quando rezamos o Rosário, contemplamos os mistérios mais importantes da vida de Jesus, desde a Anunciação do Senhor a Maria pelo Arcanjo Gabriel até a Ascensão ao céu e o derramamento do Espírito Santo. Mas um mistério em especial não é contemplado: o mistério dos quarenta dias e quarenta noites que Jesus jejuou no deserto, cf. Mt 4,2. Mas a Mãe Igreja, em sua sabedoria, propõe dentro do ano litúrgico um tempo próprio para contemplarmos e mergulharmos neste grande mistério. Um tempo de uma graça especial para a nossa conversão. Um tempo de lançarmos um olhar para o nosso interior e fazermos uma profunda avaliação sobre a nossa vida.

No mundo moderno, diante da correria do dia a dia e dos estresses, o homem tem buscado uma vida saudável, por isso cuida da sua alimentação, pratica esporte, constantemente faz um check-up para avaliar as condições do seu organismo e muito mais. Apesar de aparentemente tudo isso não estar relacionado com uma vida espiritual, no fundo não deixa de ser reflexo do mais íntimo desejo do homem: a vida, vida plena, vida saciada, vida de Deus.

Criado à imagem e semelhança de Deus, recebe do próprio Deus o sopro da vida para viver em comunhão com Aquele que é a fonte da vida. Mas o homem perde tudo isso a partir do pecado, da desobediência; e tem como conseqüência a morte.
Mas Deus, em seu infinito amor, “jamais abandona a obra de sua sabedoria”(1) e, chegada a plenitude dos tempos, nos envia o seu próprio Filho para nos resgatar e n’Ele temos novamente a vida, pois o próprio Senhor nos diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a VIDA” (Jo14.6) e “VIDA em abundância” (cf. Jo10,10).

Por tudo isso, a vida é o dom mais precioso concedido por Deus ao homem. Mas no mundo atual, em que a cultura de morte tem assolado toda a humanidade, o homem moderno tem perdido o sentido pleno de sua vida, tem se deixado levar por tantas coisas que não são essenciais, como diz uma canção secular do Zeca Pagodinho, “deixa a vida me levar, vida leva eu”. Sabemos que essa não é a vida sonhada e querida por Deus para nós. Não é a vida na qual nos realizamos verdadeiramente.

Diante de toda essa situação, devemos buscar um verdadeiro projeto de vida, um projeto que nos leve à verdadeira felicidade, em que encontremos o essencial que nos preenche. Mas diante da complexidade de nossa vida, do seu mistério próprio, isso não acontece num passe de mágica, principalmente quando nos deparamos com tantas barreiras contrárias à vida dentro de nós. Como por exemplo: o pecado, vícios, as desordens de toda espécie, o desequilíbrio etc. E é exatamente por isso que a Mãe Igreja nos propõe a Quaresma, tempo de penitência, de conversão, de libertação, de mergulharmos todas essas barreiras no grande Mistério do amor de Deus, da graça especial derramada nesse tempo.

Muitas vezes, ao passar pelas ruas, vemos faixas nas portas das seitas, convidando as pessoas e dizendo que ali o milagre acontece, como se Deus fosse grande porque faz milagres. Mas sabemos que nosso Deus é grande porque é mistério insondável, somente dá a revelar o que é necessário para crermos. É um abismo de riqueza extraordinário. É nesse abismo de riqueza que somos chamados a nos lançar para vencermos todas as situações de morte que nos escravizam e tiram a nossa verdadeira alegria. Mergulhar o mistério de nossa vida no mistério da vida de Deus através da penitência. Pois o maior milagre é termos a nossa vida ordenada segundo o plano de Deus, realizando a Sua vontade e vivendo a verdadeira liberdade.

É bom ressaltarmos que, quando falamos de penitência, parece que falamos de algo ruim, penoso e até em desuso. Mas não é essa a visão que devemos ter. A penitência existe em vista de um bem maior; e é nesse bem que deve estar focado o nosso pensamento, como, por exemplo, a mãe que espera um bebê: não é na dor do parto que se detém o pensamento da mãe, mas no fruto maravilhoso que vai sair de suas entranhas.

Outro cuidado que devemos ter é o de não deixar o tempo da graça passar. Muitas vezes até temos consciência de tudo isso, mas não sabemos aproveitar e, quando nos damos conta, a Quaresma já acabou ou está no fim e aí nada ou quase nada pode ser feito. Por isso, temos que buscar a disciplina e a ascese para bem aproveitarmos esse tempo, mergulharmos de cabeça com coragem e audácia, lembrando sempre que vamos para uma batalha e nada vai ser fácil. É só refletirmos o texto de Mt 4,1-11, pois temos um inimigo, o demônio, que vai fazer de tudo para não bebermos da graça. Ele usa até de uma pedagogia, como fez com Jesus: primeiro vai mostrar claramente as nossas necessidades, nos apontar que precisamos de algo: “se és Filho de Deus, ordene que estas pedras se tornem pão” (Mt 4,3). Quer deixar bem evidente algo de que necessitamos e que muitas vezes é lícito, como foi com Jesus, que teve fome. Segundo, lança-nos um desafio: “se és Filho de Deus, lança-te abaixo, pois está escrito: Ele deu a seus anjos ordens a teu respeito; proterger-te-ão com a mão, com cuidado, para não machucares o teu pé em alguma pedra” (Mt 4,6). Vem colocar o nosso propósito à prova, testando nossa fé e levando-nos a questionar o amor de Deus por nós. Terceiro, faz-nos uma proposta sedutora: “Dar-te-ei tudo isso se, prostrando-te diante de mim, me adorares” (Mt 4,9), querendo mostrar um caminho mais fácil e também a sua presteza oferecendo um pseudobenefício. Tudo isso parece algo muito claro e até achamos que não vamos cair, mas a sutileza do demônio nos leva a cair mais vezes do que pensamos, basta fazermos uma breve reflexão. Quantas vezes não deixamos algo de Deus por algo que saciasse somente nossa carne? Quantas vezes murmuramos contra Deus como se Ele não cuidasse de nós? Quantas vezes deixamos o egoísmo imperar em nossas vidas?

Diante de todas essas tentações, Jesus é a referência certa e segura para vencermos. A Sua postura diante de Satanás o exorciza. Se tivermos a mesma postura de Jesus, com certeza ele também não resistirá. Devemos canalizar nossas necessidades para uma necessidade maior que é a vontade de Deus e Sua Palavra que é vida, como fez Jesus. “Não só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que procede da boca de Deus” (Mt 4,4). Temos que nos relacionar com Deus por aquilo que Ele é, não por aquilo que faz, o que nos leva a nos afastar d’Ele por não recebermos uma graça: “não tentarás o Senhor teu Deus” (Mt 4,7). A nossa vida pertence somente a Jesus, pois foi Ele quem nos resgatou a preço de Seu Sangue. “Adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás” (Mt 4,10).

E, buscando a dignidade da vida humana, a Igreja no Brasil lança todos os anos, no tempo da Quaresma, a Campanha da Fraternidade, que este ano tem como tema: “Fraternidade e segurança pública” e como lema: “A paz é fruto da justiça” (Is 32,17). Preocupada com a violência de toda espécie que tem afetado o nosso povo, ceifando prematuramente muitas vidas, leva-nos a refletir profundamente sobre essa situação.

Tem como objetivo geral “suscitar o debate sobre segurança pública e contribuir para a promoção da cultura da paz nas pessoas, na família, na comunidade e na sociedade, a fim de que todos se empenhem efetivamente na construção da justiça social que seja garantia de segurança para todos” (2). A promoção da cultura da paz reflete claramente a missão da vida humana: ser instrumento de justiça nas mãos de Deus. E a paz é para a alma do cristão como é o ar para os nossos pulmões: certeza de vida, vida plena, vida do Príncipe da Paz que é Jesus. Vida para ser festejada, celebrada, pois temos aí a certeza do sentido da nossa vida: Tenho uma missão e me realizo no seu cumprimento.

(1) Prefácio da Oração Eucarística VI B.
(2) Texto base da Campanha da Fraternidade 2009.

Oração da Campanha da Fraternidade 2009

Bom é louvar-vos, Senhor, nosso Deus, que nos abrigais à sombra de vossas asas, defendeis e protegeis a todos nós, vossa família, como uma mãe, que cuida e guarda seus filhos. Nesse tempo em que nos chamais à conversão, à esmola, ao jejum, à oração e à penitência, pedimos perdão pela violência e pelo ódio que geram medo e insegurança. Senhor, que a vossa graça venha até nós e transforme nosso coração. Abençoai a vossa Igreja e o vosso povo, para que a Campanha da Fraternidade seja um forte instrumento de conversão. Sejam criadas as condições necessárias para que todos vivamos em segurança, na paz e na justiça que desejais. Amém.

Elias Gobbi
Consagrado na Comunidade Católica Pantokrator

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