Espaços públicos sem símbolos religiosos?

A Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão propôs, no dia 31 de julho deste ano, uma ação civil pública para obrigar a União a retirar os símbolos religiosos de locais de ampla visibilidade e de atendimento ao público nas repartições dos órgãos federais no Estado de São Paulo. A presença de tais símbolos estaria ferindo a liberdade religiosa de cidadãos que não compartilham a mesma fé relacionada com determinado símbolo.

Movimentações semelhantes pela retirada dos símbolos religiosos em espaços do Estado, como tribunais, salas de trabalho em repartições públicas, hospitais e salas de aula também têm acontecido em outros Estados. O Presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, desembargador Luiz Zveiter, ao tomar posse do cargo, em fevereiro deste ano, determinou a retirada dos crucifixos espalhados pelo edifício da corte e desativou a Capela. O argumento que embasa atos dessa natureza é sempre o mesmo: o Estado brasileiro é “laico” e, por isso, a presença de tais símbolos seria contrária ao que prevê o artigo 5º da Constituição Federal.

Contudo, não há nada no texto constitucional que proíba a presença de símbolos religiosos nos espaços públicos. A Constituição não confessa nada, de maneira explícita nem implícita, que proíba a presença de símbolos religiosos nos espaços do Estado. A própria Constituição, no seu preâmbulo, faz referência a Deus. E, nas notas de reais que todos usamos, está escrito: “Deus seja louvado”. Nem por isso o Estado brasileiro deixa de ser laico, ou adota um religião oficial; e, certamente, isso não ofende aos brasileiros que não têm nenhuma religião. Laicidade do Estado é a clara separação entre Estado e Igreja, ao contrário daquilo que vigorava até a Constituição de 1891, antes da República, quando o Brasil tinha o catolicismo como sua religião oficial.

Segundo o Cardeal Dom Odilo P. Scherer, Arcebispo de São Paulo, “o Estado brasileiro não tem uma religião oficial, mas respeita todas e deixa ao cidadão a liberdade da escolha; e também respeita a liberdade de ter ou não ter uma religião. A Igreja Católica aceita isso, sem problemas. Por outro lado, a laicidade do Estado também significa que este não interfere nas Igrejas e religiões, de modo indevido, respeitando a sua autonomia interna para se organizarem, resguardados os princípios constitucionais”(1). Dom Odilo considera que, “com demasiada frequência e facilidade, e de modo equívoco, é invocada a laicidade do Estado. Ela, certamente, não autoriza a repressão de ideias ou manifestações religiosas, a não ser que sejam claramente criminosas, como seria a incitação à violência ou a promoção de atos desonestos” (2).

Na organização da sociedade, o secularismo proclama o laicismo do Estado, que não é o mesmo que laicidade do Estado. Quanto se fala em laicidade do Estado, significa que este não é regido por nenhuma religiosidade e, portanto, suas leis, suas ações não são religiosas. Ser o Estado laico é algo bom, pois Estado e Igreja são importantes para a sociedade, mas cada um tem papel distinto, devendo haver autonomia na relação entre os dois.
Não podemos confundir laicismo com laicidade. Laico não significa avesso à religião. O Estado pode ser leigo sem ser a-religioso. A laicidade do Estado não impede que o povo leve sua consciência religiosa para os poderes públicos, e menos ainda, que as leis e ações do Estado não se enriqueçam com o imenso patrimônio de sabedoria e humanidade das religiões. Um governante, por exemplo, não pode ser cristão como pessoa privada e indiferente como pessoa pública! Essa é uma questão que dificilmente fica bem compreendida.

Já no laicismo, o Estado assume a irreligião como sua opção religiosa, ou seja, uma fobia de tudo aquilo que é religioso. Nele, a religiosidade das pessoas pode até existir, mas no foro íntimo de suas consciências, nas sombras dos templos e no claustro de suas casas. A religiosidade não pode ter implicação nos valores da sociedade, nas leis, nas ações dos poderes públicos.

A Cruz: mais do que um símbolo religioso

Mas, dentre os símbolos religiosos, inegavelmente, há, em relação à Cruz, algo peculiar: a Cruz – assim também o crucifixo – não é simplesmente um símbolo religioso. Ela faz parte de nossa identidade nacional. Foi o primeiro nome do Brasil: “Terra de Santa Cruz”. Por isso não se pode ir simplesmente arrancando os crucifixos das repartições públicas. O crucifixo é mais do que um símbolo da Igreja Cartólica: é símbolo da nacionalidade do Brasil. Por isso ele não ofende a fé do não-cristão que conhece a história. É simbolismo da pátria. Não é mais somente da religião. Faz parte de nossa pátria. Faz parte da história de todo mundo que vive aqui no Brasil, não só dos católicos. É patrimônio da história e da cultura brasileiras.

A Cruz num Tribunal é um símbolo do Cristianismo, da fé do povo, do que representa a morte de Jesus Cristo para qualquer criminoso e do que representa o resultado de um julgamento injusto para o juiz. Não é somente um símbolo da fé, mas da identidade do nosso país. O Cristianismo é o berço da civilização ocidental. Roma cristã foi um núcleo universal. Na verdade, o crucifixo é símbolo da laicidade do Estado, pois representa a identidade nacional. Independente de nossa confissão religiosa, não podemos negar a memória de nossas raízes cristãs. Uma sociedade que esquece seu passado fica exposta ao risco de não saber enfrentar o presente e não conseguir se preparar para o futuro.
Assim se pronuncia Dom Odilo Scherer: “a presença de símbolos religiosos em espaços públicos faz parte da história e da cultura do povo e de suas livres manifestações; até agora, isso não foi visto como desrespeito ou ofensa à liberdade religiosa. Ao contrário, a sua exclusão obrigada dos espaços públicos do Estado, de um momento para outro, poderia, isso sim, suscitar constrangimento e uma sensação de desrespeito a muitos brasileiros, e não somente católicos. Além disso, como a experiência mostrou durante mais de cem anos de República, a manutenção de símbolos religiosos em espaços públicos não levou o Brasil a ter uma religião oficial. Resta perguntar, se o Brasil ficaria melhor com a retirada dos símbolos religiosos” (3).

Alguém se atreveria a retirar o Cristo Redentor do alto do Corcovado?

(1) Jornal O São Paulo, edição de 18 de agosto de 2009.
(2) Ibidem.
(3) Ibidem.

Kátia Maria Bouez Azzi
Consagrada na Comunidade Católica Pantokrator

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