Não é um exagero dizer-se que toda a existência do fiel leigo tem por finalidade levá-lo a descobrir a radical novidade cristã que promana do Batismo, sacramento da fé, a fim de poder viver as suas exigências segundo a vocação que recebeu de Deus” (1). Vemos, nesse importante documento sobre os leigos, que o Papa João Paulo II afirma que o batismo insere o fiel leigo na radicalidade do Evangelho.
Referindo-se ao encontro com os jovens no grande Jubileu do ano 2000, João Paulo II diz: “Por isso, vibrando com o seu entusiasmo, não hesitei em pedir-lhes uma opção radical de fé e de vida” (2).
Iniciamos esse artigo citando dois documentos magisteriais do Papa para que fique claro, logo de início, que a radicalidade evangélica é uma proposta da Igreja para o leigo batizado, em especial, para os jovens.
Na verdade, o Evangelho é essencialmente radical. Basta lembrar que Jesus mandou amar os inimigos (3), dar a outra face ao que nos bofeteia (4), renunciar pai, mãe e até os filhos (5)! Mais ainda, o que é mais radical do que o Filho de Deus morrer na Cruz como um malfeitor? São João Crisóstomo dizia aos que tinham medo da radicalidade: “Por mais que tu faças, por mais que te humilhes, nunca farás o quanto fez o teu Senhor”.
… o texto continua após a imagem…
Diante do Evangelho, da Cruz, como temer a radicalidade como um mal, um desequilíbrio, uma espécie de fundamentalismo? Todavia, essa tem sido a justificativa para a cultura do “mornísmo” em muitos ambientes cristãos. A Igreja está repleta de piedades e devoções, boas intenções, gente que colabora, mas falta a radicalidade dos santos.
“Conheço as tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te” (6).
Quem são os mornos? São esses que colocam tudo nas meias medidas. E o que é o vômito? É uma realidade que está no organismo, em princípio para edificar, mas que se torna um estorvo. Assim são os mornos: dizem ser católicos, “estão na Igreja” – entre aspas porque atualmente nem à Igreja, às vezes, vão mais – mas serão vomitados porque são uma contradição: creem no que querem crer; vivem como querem viver; dão-se a Deus e ao próximo na medida em que não se sentem lesados mas justificam a consciência; são às vezes piedosos, mas rezam do seu jeito, e não com a comunidade, na igreja. Morno é aquele que assume uma postura medíocre justificada por mil desculpas.
“Poderíamos abordar a complexa miséria moral do medíocre sob diversos ângulos, mas baste-nos registrar este: a característica fundamental do medíocre é precisamente não ter características:
♦ Não será nem frio nem quente: será morno.
♦ Não será branco nem preto: será cinzento, esfumado, indefinido.
♦ Terá medo dos abismos e das cumeeiras: ficará a meia altura, na ladeira.
♦ Não será nem pervertido nem santo: será bonzinho.
♦ Evitará sempre os ‘excessos’ do heroísmo: adaptar-se-á às moderadas suficiências.
Em resumo: será tranqüilo o suficiente para não ter que perder o sono com grandes responsabilidades; generoso o suficiente para não ser denominado egoísta; trabalhador o suficiente para não ser considerado um vagabundo, um parasita; amável e serviçal o suficiente para conseguir um pequeno número de amigos que satisfaçam egoisticamente as suas necessidades afetivas…” (7).
Radicalidade e radicalismo
Na verdade, é preciso que se entenda o que é radicalidade e diferenciá-la de radicalismo. “A palavra radical provém do latim ‘radix’ (raiz) e ‘radicalis’ (relativo a raiz). Radicalidade significa, na verdade, autenticidade, pois remete a ir até a raiz da questão, no caso, à profundidade de Deus e Seus mistérios. O termo radical traz o sentido de extremo, o que está em uma extremidade de pensamento ou atitude… É preciso diferenciar radicalidade de radicalismo que, pelo sufixo ‘ismo’, pressupõem o reducionismo de todas as outras dimensões àquela denominada pelo adjetivo que o precede, levando ao desequilíbrio e ao exagero. No reducionismo radicalista despreza-se tudo, dando valor somente à causa em questão, desrespeitando a legitimidade das outras realidades, até mesmo a dignidade humana” (8).
O amor é o termômetro. Se há amor, não há radicalismos, pois se respeita a si para não se cair em exageros, respeita-se o próximo para não lesá-lo em sua dignidade e liberdade; e se respeita a Deus, para não usá-l’O como justificativa para os próprios interesses. Mas o amor é essencialmente radical, pois é doação de si para o próximo e para Deus. Na doação desfaço-me do que é meu para dar ao outro e isso é radical. No entanto, o amor é sábio para ponderar a harmonia na vivência das virtudes que ele implica – paciência, temperança, mansidão, perdão, justiça, doação etc. – na maneira prática de amar em cada situação. No entanto, essa harmonia não é necessariamente equilíbrio entendido como meio termo, menos ainda, como meias medidas. No amor meus direitos não são preservados na meia medida, mas são ofertados em favor do próximo. Quando se ama é preciso estar preparado para ir até a radicalidade da paciência, do perdão, da mansidão, da doação, e até mesmo da santa ira, pois o amor pode pedir esses extremos em muitas situações. Quem não está aberto a esses “desequilíbrios” não está preparado para o verdadeiro amor.
O amor é justo? Na óptica do próximo é, mas na óptica de quem ama, aparentemente não, pois aquele que ama se desfaz de seus direitos em favor do próximo. Não é justo para si aparentemente, pois, na verdade, aquele dá é quem mais recebe, e aquele de que ama vive a justiça da sua existência que é o próprio amor. Mas no dia-a-dia, sabemos bem, isso nem sempre é fácil e justamente aqui é que estão as justificativas dos medíocres: não é justo perdoar, não é justo desfazer-me dos bens que conquistei trabalhando em favor do outro, não é justo dar para Deus o meu tempo de legítimo descanso. Essas coisas não são justas aparentemente, pois nelas o direito próprio é “lesado”. Contudo, aqui está a atitude de amor, que é radical: eu, e não um terceiro, renuncio livremente ao meu direito em favor do próximo. Isso é amor, isso é ser radical.
Seguir Cristo é assumir a lógica do amor: “há mais alegria em dar do que receber” (9). Quando seguimos Cristo, ponderamos a Sua Justiça do sempre dar e por isso assumimos uma postura radical em muitas coisas da vida. Se observarmos bem, no evangelho não tem um trecho sequer que convida a receber, a conclamar direitos, mas as palavras de Jesus têm uma única mão, a mão do dar-se ao próximo, não por dever, mas por amor. Essa radicalidade é fruto desse amor, mas muitas vezes é fruto de uma postura autêntica diante de um mundo que propõe caricaturas do verdadeiro amor.
“Porque virá tempo em que os homens já não suportarão a sã doutrina da salvação. Levados pelas próprias paixões e pelo prurido de escutar novidades, ajustarão mestres para si” (10).
Acredito que estamos vivendo esse tempo, em que a Verdade de Cristo é tão distante das pessoas, da cultura moderna, que os homens não suportam as exigências e radicalidades evangélicas. Então se vai a mil lugares procurar algo, uma doutrina, uma forma de cristianismo ou de religião, que se adapte mais à própria justiça, aos próprios padrões, aos próprios sonhos, à maneira própria de viver.
“A verdadeira doutrina é árdua, mas não engana”, dizia João Paulo II. Não nos enganemos, pois, como disse Bento XVI aos jovens, Jesus não nos tira nada do que é bom, verdadeiro e belo. O Evangelho é radical e o seguimento de Cristo nos insere nessa radicalidade, a radicalidade do amor, a única que nos faz radicalmente felizes.
(1) Exortação Apostólica Pós-Sinodal Christifideles laici, n. 10.
(2) Carta Apostólica Novo millennio ineunte, n, 09.
(3) Cf. Lc 6,35.
(4) Cf. Mt 5,39.
(5) Cf. Mt 10,29.
(6) Ap 3, 15-16.
(7) D. Rafael Cifuentes, “Grandeza de Coração”.
(8)Comunidade Católica Pantokrator, “Documento sobre Santidade Comum pela Fidelidade Incondicional”, n. 6.
(9) At 20,35.
(10) 2 Tm 4, 3
André Luis Botelho de Andrade
Fundador e Moderador da Comunidade Católica Pantokrator
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Estou no trabalho. Abri o site para “tomar um lanchinho espiritual” em meio a tarde. Aqui no mundo secular, é muito clara a assertiva de que cada vez mais a radicalidade em nome da fé, a renúncia em nome de Deus, tornam-se algo que incomoda. Não se trata de algo tido por ridículo, somente, mas percebo que cada vez mais incomoda, ofende. Pq. ofende? pq. parece que o conforto, o prazer, as viagens, o corpo belo, a posição social e cultural…se tornam deuses. Quem age contra “deus” ofende quem lhe presta culto.
Há um gás venenoso de secularismo infectando os ares por aqui. Dureza é que trata-se de um gás cheiroso, atraente até. Alguém aí me arranja uma máscara?
É, irmãos da aliança, é preciso inalar radicalidade para ser profeta. Queridos formadores, precisamos de adestramento bélico para tais trincheiras… Aqui o bicho pega.
Saudações a todos os soldados de Cristo postados nas bases do mundo secular.
Marcia Fonseca, correspondente Pantokrator, diretamente do mundo secular.
Concordo com você Marcia!!! Também percebo que a vivencia do evangelho no dia-a-dia realmente incomoda. E incomoda não somente os “ateus” mas incomoda mesmo “cristãos” (parentes, conhecidos, estranhos) que “não suportam a sã doutrina” como nos disse SãoPaulo…
Vamos com coragem testemunhar e saber que assim louvamos a Deus, seja pelo anuncio, seja pelo sacrifício.
Abraços.
Muito boa essa completa explicação
Obrigada
A paz!
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Abraços Fraternos.
Ótima reflexão André!!!!!!!!