O ser humano fala de amor nas diversas situações do seu conviver com os outros: amam-se os amigos, os pais e os filhos, amam-se um homem ou uma mulher, ama-se a Deus e cada uma dessas experiências de amor têm as suas características próprias e expressões específicas. É próprio do ser humano não esgotar a sua capacidade de amar apenas numa dessas experiências de amor; ao contrário, cada experiência de amor vivida com generosidade abre para todas as outras. As mais envolventes de todo o ser tornam a pessoa capaz de amar em todas as circunstâncias. O amor de Deus, quando vivido com verdade e radicalidade, influencia todas as experiências de amor.
A Revelação judaico-cristã é a que mais valoriza a experiência de amor, exatamente porque nos revela Deus como Pessoa que ama e quer ser amada, com quem o homem pode estabelecer uma verdadeira intimidade de amor e comunhão. “Do amor à caridade”, enuncia-nos o itinerário do crescimento do amor, em que as capacidades naturais de amar, enfraquecidas pelo pecado, são redimidas e potencializadas pela força do Espírito de Deus, isto é, pela energia amorosa que nos vem do fato de sermos amados por Deus e de O procurarmos amar, mais do que todas as outras realidades humanas. É um tema que nos situa no âmago da relação entre a nossa natureza humana e o dom da graça divina, pois a caridade significa aquele grau de perfeição do amor que só é possível ao homem com a força do Espírito Santo. A caridade acontece naqueles que fizeram da sua experiência de amor a Deus a fonte de toda a sua capacidade de amar. A caridade é a verdade plena do amor, porque é o amor ao ritmo do Espírito de Deus.
Deus nos deu um coração capaz de amar
Não é a fé que nos dá a capacidade de amar. Deus criou-nos à Sua imagem e, por isso, capazes de amar. Essa capacidade foi ferida pelo pecado e precisa ser resgatada pelo amor misericordioso de Deus. A redenção restitui ao coração humano a sua capacidade de amar e eleva-o à plenitude dessa capacidade, amando a Deus e amando como Deus ama. É na sua capacidade de amar que o homem se assemelha mais a Deus. O amor humano tem, em germe, todas as características do amor divino, embora não consiga, sem a graça, vivê-las em plenitude:
– A atração – todas as experiências de amor interpessoal começam nesse sentir-se atraído pelo outro. De repente uma outra pessoa torna-se especial, porventura única, porque há nela algo que me atrai: a sua beleza, a sua bondade, a sua inteligência, o seu mistério. A atração do bem e da beleza está, quase sempre, na origem do amor. Nesse algo que nos atrai, reconhecemos a nossa identidade profunda, os nossos anseios mais íntimos, a definição do nosso próprio ser. Começar a amar é deixar-se guiar por essa atração, em busca de uma relação. Jesus comparou o Reino dos Céus a um tesouro que, quando se descobre, faz-se tudo para o alcançar. E fala de atração ao se referir ao amor dos discípulos por Ele: “Ninguém vem a Mim (isto é, me seguirá) se o Pai não o atrair” (Jo 6,44).
– A revelação – a atração nos conduz à pessoa amada. Mas o amor só começa se houver revelação. A beleza que nos atrai é escondida e misteriosa, cada pessoa guarda no segredo do seu coração o seu tesouro. E desvelá-lo ao outro é já atitude generosa do dom de si mesmo. Se aquele que me atrai me aceita e se revela, o amor começa. A palavra que revela, o gesto que anuncia constróem o encontro progressivo entre pessoas que se amam. É por isso que o amor é a mais verdadeira fonte do conhecimento do outro. Essa exigência de revelação constitui uma das maiores dificuldades do amor humano. As pessoas querem amar e ser amadas, mas não estão dispostas a se revelar, guardam os seus segredos, escondem o seu mistério. Por vezes esperam ou até exigem a revelação do outro, mas não estão dispostas a abandonar-se na confiança. Entre desconhecidos o amor não cresce, pode mesmo murchar e morrer. Por outro lado, o conhecimento mútuo aumenta a atração recíproca. Na experiência do amor de Deus, a Sua revelação é constitutiva do próprio amor.
– A contemplação – toda verdadeira experiência de amor inclui momentos de contemplação. Ao entrar pela revelação na intimidade da pessoa que nos atraiu, a beleza agora experimentada leva à contemplação. Esse êxtase de amor perante a pessoa amada é dos aspectos mais cantados pelos poetas. No caso do amor de Deus, esse contemplar a pessoa amada se chama adoração. Em nossa caminhada de fé, essa contemplação adorante é apenas inicial. Ela se intensifica no ritmo do acolhimento da Palavra reveladora de Deus e dos dinamismos do Seu amor recebidos no íntimo do nosso coração, mas só no Céu ela será perfeita, pois só então “conheceremos como somos conhecidos” e veremos, não como num espelho, mas face a face (1Cor 13,12). No amor humano essa dimensão contemplativa se exprime espontaneamente no ritmo do amor: o ficar encantado pelo outro, o sentido de gratidão tão próprio do amor, a harmonia e a serenidade interiores que brotam do amor, momentos de profunda comunhão envolvendo a totalidade do ser. Se nada disso acontece ou se tudo isso deixou de acontecer, é porque o amor foi semente que não germinou e planta que não floriu.
– A intimidade – todo o dinamismo amoroso busca uma experiência de intimidade entre pessoas. É o que, em linguagem cristã, se chama comunhão. A intimidade entre pessoas significa a revelação total de um ao outro, com o dom de todo o ser, aceitando ser conhecido para conhecer. A intimidade realiza a experiência unitiva, expressão máxima do amor. Os sujeitos da relação amorosa encontram-se de tal modo um no outro, que se sentem como um só. A experiência religiosa, na revelação judaico-cristã, resume-se à construção de uma intimidade entre Deus e o homem, entre Deus, que Se nos revela ser Ele mesmo uma comunhão de Pessoas, e o homem, que é chamado a entrar nessa comunhão de amor. É a proposta de aliança feita por Deus a Abraão, cuja plenitude será revelada por Jesus: “E nós viremos a Ele e faremos n’Ele a nossa morada” (Jo 14,23). Essa intimidade com Deus, quando acontece, torna-se central e decisiva, dá sentido a todas as experiências de intimidade construídas entre pessoas humanas, que encontram a sua verdade sendo reconduzidas à intimidade de Deus, e preenche toda a ânsia de intimidade do coração humano. O amor desabrocha na caridade. É por isso que a Virgindade no Celibato pode ser uma experiência de amor totalizante, realizando plenamente a ânsia de amor do coração humano. Em todas as suas buscas e dramas de amor, o ser humano procura a experiência de intimidade. Mas tantas vezes não a consegue por fragilidade e infidelidade. Aí se experimenta que o coração humano precisa de redenção e que a autêntica intimidade só pode ser fruto da graça do Espírito, expressão do amor-caridade.
A redenção do amor
O ser humano, enfraquecido pelo pecado, precisa que o seu coração seja redimido para realizar a sua vocação de amor. Já no Antigo Testamento é claro que o chamamento à aliança com Deus supõe a renovação do coração. Já os profetas denunciam a corrupção e a dureza do coração, que torna os israelitas incapazes da aliança. E essa é a grande promessa da redenção, a promessa de um “coração novo”. “Eu derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados; de todas as vossas imundices e de todos os vossos ídolos. Eu vos purificarei. Dar-vos-ei um coração novo e porei em vós um espírito novo, tirarei da vossa carne o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne. Porei o meu Espírito em vós e farei que caminheis segundo as minhas Leis” (Ez 36, 25-28). Esta promessa de um coração renovado viabilizará a aliança como uma união de ternura e de amor: “desposar-te-ei para sempre, desposar-te-ei na justiça e no direito, na ternura e no amor; desposar-te-ei na fidelidade e tu conhecerás o Senhor” (Os 2,21-22).
Jesus inicia a sua pregação por um convite à conversão do coração (cf. Mc 1, 15), fundamental para entrar na dinâmica do Reino. Jesus realiza entre o homem e Deus o amor radical e definitivo, a plenitude da aliança. Mas misteriosamente a expressão sublime desse amor novo é a Sua morte na Cruz, o seu Sangue derramado é o sinal da aliança definitiva, e na sua entrega, Ele redime o nosso coração. O caminho do amor-caridade voltou a ser possível, sabendo nós que no nosso caminho de amor encontramos sempre a exigência da Cruz.
O itinerário que nos leva do amor à caridade passa pela vivência do Mistério Pascal porque todos os nossos dinamismos de amor precisam ser purificados e redimidos. O caminho do amor não é fácil; tantas vezes significa aceitar morrer para viver, superar na renúncia e no sofrimento os instintos de facilidade a que nos conduz o nosso desejo de amar. O caminho do amor é o caminho da generosidade e da coragem.
Extraído da “Primeira Catequese Quaresmal”, do CARDEAL JOSÉ PATRIARCA, Lisboa, Portugal, 2002.