Hoje se discute em alguns círculos de debates acerca da visão do Apóstolo Paulo sobre a mulher, em especial pela interpretação que se faz de dois trechos da primeira Carta aos Coríntios (1Cor 11, 3-16 e 1Cor 14, 33b-35), em que ele se refere explicitamente às mulheres. Teria o Apóstolo uma visão machista? Encerrando essa coluna do ano paulino, vamos refletir brevemente sobre esses dois textos. Para alguns exegetas, esses trechos não são de Paulo; foram acréscimos, inclusões posteriores. Mas, para outros, os trechos são mesmo de autoria paulina. Prevalece o entendimento da segunda hipótese, merecendo os trechos uma exegese. Para tanto, é importante ler na Sagrada Escritura, juntamente com essa reflexão, os trechos bíblicos que mencionaremos a seguir.
I – A mulher deve fazer uso do véu – 1Cor 11, 3-16 – a questão gira em torno do costume das mulheres de cobrirem a cabeça pelo menos durante o culto. Mulheres e homens romanos cobriam a cabeça no culto; mulheres e homens gregos não o faziam. A Igreja de Corinto, uma grande cidade em terras gregas dominadas por Roma, incluía imigrantes orientais, para os quais cobrir a cabeça era importante. A cobertura da cabeça era algo cultural, mas indicava valores que iam além do símbolo. No mundo mediterrâneo antigo, o cabelo feminino era objeto fundamental na provocação de prazeres sensuais. Nas sociedades que usavam cobertura na cabeça, as mulheres casadas que a tinham descoberta eram consideradas infiéis aos maridos, como que procurando outro homem. Por outro lado, as prostitutas e as jovens casadoiras usavam a cabeça descoberta, pois estavam à procura de homem. As que não cobriam a cabeça no geral eram mulheres cultas, de posição superior, das famílias que acolhiam a maioria das igrejas domésticas; para elas, a forma como enfeitavam o cabelo era questão pessoal. Há estátuas da época que mostram mulheres ricas com a cabeça descoberta e com penteados elegantes. Portanto, o problema dos cabelos femininos, cobertos ou não, poderia se transformar para a Igreja de Corinto em uma grande controvérsia. O propósito de São Paulo, ao aconselhar o uso de véus pelas mulheres, era salvaguardar a unidade da Igreja. O véu é um traço cultural – a mulher velada era a mulher respeitada, a que tirava o véu publicamente estava se oferecendo. As traduções do versículo 10 não são as mais exatas: “Por isso, a mulher deve trazer o sinal da submissão sobre sua cabeça” (Bíblia Ave Maria). Mas a idéia não é a de submissão. O termo que aparece no original grego é exousía – autoridade, poder. Assim, uma tradução mais próxima seria: “Eis porque a mulher deve trazer sobre a cabeça uma marca de autoridade” (Bíblia TEB). Por muito tempo interpretou-se essa autoridade como aquela que o homem exerce sobre a mulher. Ora, no NT esse termo nunca designa um poder a que se está sujeito (sentido passivo), mas um poder que se exerce (sentido ativo), o domínio sobre alguma coisa, e não a autoridade sob a qual alguém se encontra. Portanto, o véu é poder, no sentido de dignidade – a mulher é dona de si e não está à mercê dos olhares dos outros. Essa é uma interpretação possível e que vai à gênese do texto.
II – O silêncio da mulher na assembléia – 1Cor 14, 33b-35 – O que S. Paulo deseja é a ordem na assembléia. Não busca aqui tratar de hierarquia. Em Corinto havia certa desordem quanto à vivência dos carismas, isso por causa dos dons em abundância que havia no lugar. No mundo antigo, era comum o mestre ser interrompido por perguntas da platéia. Mas a interrupção era considerada rude se as perguntas refletissem ignorância sobre o assunto. Como as mulheres eram consideradas menos preparadas do que seus maridos, São Paulo teria apresentado uma solução em curto prazo (o silêncio das mulheres em situações específicas) e outra em longo prazo (instrução conseguida junto aos maridos). A solução paulina em longo prazo destaca que a mulher tem potencial para a aprendizagem e a coloca em nível de igualdade com o homem. São Paulo não teria exigido silêncio total das mulheres, uma vez que em 1Cor 11,5 ele as identifica como profetisas.
São Paulo não leva em consideração os preconceitos culturais do judaísmo. As comunidades paulinas são construídas no espírito de Gl 3,28: “já não há nem judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos sois um em Cristo Jesus” – Paulo quer mostrar a unidade e a universalidade da Igreja. Esse trecho da Carta aos Gálatas é invocado por alguns como fundamento do sacerdócio e do diaconato das mulheres, mas isso não tem propriedade alguma. Não há uma mulher nas Sagradas Escrituras, nem na História da Igreja que tenha exercido o ofício do diaconato como ministério ordenado. Houve diaconisas, umas até citadas por Paulo, mas o termo “diaconia” era muito usado no sentido de serviço, aliás, é a sua tradução literal do grego. Muitas mulheres prestavam serviço à Igreja; eram diaconisas, mas não exerciam o diaconato ministerial. Febe mesmo é diaconisa (cf. Rm 16, 1), mas não no sentido de ministério ordenado, e sim de serviço. A história registra o uso do termo amplamente, mas não no sentido ministerial. Eram ainda chamadas de diaconisas as mulheres que ajudavam na preparação do batizado; o grupo de beatas que cantavam ao Senhor como uma comunidade religiosa; as enviadas pelo ecônomo diocesano para trabalhar etc.
Jesus não instituiu nem uma mulher no Sacramento da Ordem. A Igreja não tem poder sobre a substância dos sacramentos, não pode mudar o que a Revelação divina legou. Ela é guardiã dessa verdade, depósito da fé. A vocação ao Sacramento da Ordem é um dom outorgado por Deus; não é um direito subjetivo do fiel.
Paulo em suas Cartas se refere a várias mulheres, mencionando-as em destaque, o que nos faz concluir que estavam inseridas na vida daquelas comunidades, daquelas igrejas onde Paulo atuava e pregava: Febe (Rm 16, 1); Prisca (Rm 16, 3-5); Maria (Rm 16, 6); Júnia (Rm 16, 7); Trífena, Trifosa e Pérside (Rm 16, 12); Júlia (Rm 16, 15); Cloé (Rm 16, 15); Evódia e Síntique (Fl 4, 23).
A pregação de Paulo é altamente cristocêntrica, de modo que ele aplicou em suas comunidades a doutrina de Jesus. Segundo os ensinamentos das epístolas paulinas, todos são um povo cheio de Espírito, todos foram purificados santificados, participam do mesmo Espírito e do poder de Deus. Todos são eleitos santos porque possuem o privilégio de ser adotados como filhos de Deus. A Igreja de Cristo concretiza a nova família, em que todos, sem exceção, são irmãos. Para Paulo, todos são iguais em termos de valores. As diferenças não são causa de discriminação ou supremacia de um sobre o outro. A criação de ambos – homem e mulher – como imagem e semelhança de Deus é o princípio norteador da igual dignidade que possuem: homem e mulher são diferentes, mas iguais em dignidade. Têm a mesma dignidade por ser pessoa humana. Essa é a mensagem de Jesus que Paulo propaga.
Para a doutrina cristã sobre a sexualidade, homens e mulheres são diferentes, mas não são inimigos natos. Ao contrário, são mutuamente complementares. Um precisa do outro e completa-se no outro. Diferença não significa oposição, mas ao contrário, evoca comunhão. Não se pode fazer comunhão de iguais. É na diversidade que nos complementamos e nos enriquecemos. Nisso consiste a unidade da Igreja. A mulher tem igual dignidade que o homem e deve ser respeitada como pessoa humana que é. Trata-se de uma evolução histórica desse reconhecimento, cujas bases já haviam sido lançadas por Jesus – que desconcertou os seus contemporâneos, ao acolher, ouvir e curar as mulheres, em relação às quais pesava forte discriminação na cultura da época – e que, mediante a caminhada histórica da humanidade, foi sendo assimilada. A natureza não dá saltos; essa evolução vai caminhando de acordo com o desenvolvimento da cultura. Por isso já se pode perceber claramente quão danosa e distante da verdade é a teologia feminista, de um lado, e a ideologia de gênero, de outro, por ferirem na raiz o plano divino para o homem desde a Criação e que faz parte de sua identidade como imagem e semelhança de um Deus que é essencialmente comunhão.
Bibliografia:
– PONTIFÍCIA COMISSÃO BÍBLICA. “A Interpretação da Bíblia na Igreja”, São Paulo, Paulinas, 1993.
– BARBAGLIO, G. “As Cartas de Paulo”, vols. I e II, São Paulo, Loyola, 1989.
– “Homens e mulheres” in Hawthorne, G. et alii, “Dicionário de Paulo e suas cartas”, São Paulo, Paulus, Vida Nova e Loyola, 2008, pp. 635-637.
Kátia Maria Bouez Azzi
Consagrada na Comunidade Católica Pantokrator