Reconhecer o verdadeiro dom de si nos impulsiona a ter mais que um desejo de fazer algo bom. Sentimos o desejo de ir ao encontro das necessidades do próximo.
O que sentimos quando sabemos que alguém deseja doar algo? O impulso natural e humano muitas vezes é de rapidamente desejar o que está sendo oferecido sem ao menos ter a certeza de que realmente se precisa do que está sendo doado. Porém, queremos receber e nem pensamos que pode existir outro alguém mais e verdadeiramente necessitado.
Hoje a sociedade é estimulada e manipulada pelo materialismo, individualismo, egoísmo, ganância, etc. Somos treinados desde criança a ter nossas próprias coisas e desejar sempre mais. Vivemos constantemente em busca de conquistar algo maior e melhor e isto não é ruim. É lícito e necessário ter objetivos na vida. O ponto negativo está que esquecemos de olhar para a necessidade do próximo porque estamos ávidos diante das coisas e conquistas passageiras deste mundo e isso nos cega.
O mundo vive uma crise de vocação, seja ela profissional, religiosa, sacerdotal ou matrimonial, simplesmente por estarmos pautados na mentalidade de encontrar nossa vocação para sermos felizes e não como um chamado ao amor. O amor é a vocação fundamental e originária de todo ser humano. É claro que a vocação nos realiza, porém, a vocação tem como fonte o amor e o amor é Deus: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, porque o amor vem de Deus, e todo o que ama é nascido de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor.” (I Jo 4, 7-8)
Deus deseja nossa realização e ele nos instrui em Sua palavra: “Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus e a Sua justiça e todas estas coisas vos serão dadas em acréscimo.” (Mt 6, 33). Aquele que busca a Deus acima de tudo recebe tudo o que precisa e brota em seu coração o verdadeiro desejo de se doar, encontra o dom de si através do amor verdadeiro que experimenta.
Dom de si cotidiano
A oportunidade de assumir o dom está no cotidiano da vida. A Virgem Santíssima é um exemplo de doação na realidade de sua vida diária, como se referiu o Papa Francisco: “Deus pensou e quis Maria desde sempre, em seu desígnio imperscrutável, como criatura cheia de graça, ou seja, repleta de seu amor. Mas para estar repletos é preciso abrir espaço, esvaziar-se, colocar-se de lado. Como fez Maria, que soube escutar a Palavra de Deus e confiar-se totalmente à sua vontade, acolhendo-a sem reservas em sua vida. E nela a Palavra se fez carne. Isso foi possível graças ao seu “sim”. Ao Anjo que lhe pergunta se estava disponível para se tornar a mãe de Jesus, Maria responde: Eis a serva do Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra.” (Lc 1, 38)
“Maria não se perde em vários raciocínios, não coloca obstáculos ao Senhor, mas com prontidão se confia e abre espaço para a ação do Espírito Santo. Ela se coloca imediatamente à disposição de Deus todo o seu ser e sua história pessoal, para que sejam a Palavra e a vontade de Deus a moldá-los e levá-los à termo. Assim, correspondendo perfeitamente ao projeto de Deus sobre ela, Maria torna-se a “toda bela”, a “toda santa”, mas sem a menor sombra de envaidecimento. É uma obra-prima, mas permanecendo humilde, pequena e pobre. Nela se reflete a beleza de Deus que é amor, graça e dom de si”. (Papa Francisco, Ângelus 08/12/2019).
Maria não para somente no sim da anunciação, ela segue o seu cotidiano e vai as pressas servir a sua prima Izabel. A Virgem poderia se dar o direito, conforto e desculpas para ficar parada em sua casa esperando o filho de Deus se desenvolver em seu ventre, entretanto ela não para, não tem medo dos desafios, necessidades e perigos do caminho, não olha para si, para sua fragilidade humana e continua com seu dom em movimento ao necessitado.
Como Maria, nós também recebemos anunciações frequentes em nossa vida, através das necessidades do próximo mais próximo de nós, aqueles que estão em nossa casa, moram na mesma rua, bairro, condomínio, os que estudam ou trabalham conosco, irmãos de comunidade, etc. Quando verdadeiramente se decide ser dom, não se espera a doação do outro para si. A vida, independente de nossas limitações, é um sim diário diante de todas as situações e necessidades que se apresentam.
Do Ato de Fé para a Doação
A fé ilumina nosso caminho de entrega total a Deus e temos como fonte de ascese o próprio ato de fé. Aquele que confia toda a sua vida nas mãos de Deus, não espera e não depende de evidências a seu favor para servir, ele está sempre apostando na palavra de Deus que é viva. A palavra nos ensina o caminho da verdadeira doação e a vida de Jesus é o maior exemplo que temos para seguir.
Jesus se entregou totalmente por amor aos homens. Ele acolheu a Cruz na totalidade, mesmo sabendo que Sua entrega seria extremamente exigente e dolorosa.
Aquele que reconhece o seu dom, entrega-se totalmente pelos amigos e inimigos simplesmente porque ama, mesmo sabendo que poderá ser humilhado, incompreendido, julgado e injustiçado, não importa, o seu desejo é ser totalmente entregue a Deus e acreditar que o sofrimento e morte diária de suas vontades humanas torna-se canal de amor e salvação aos mais necessitados. “Lembrai-vos da palavra que vos disse: O servo não é maior que o seu senhor. Se me perseguiram, também vos hão de perseguir. Se guardaram a Minha palavra, hão de guardar também a vossa.” (Jo 15, 20)
Aquele que segue o exemplo de Jesus tem a valentia de morrer para si mesmo para um bem maior na vida do próximo: “Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, caído na terra, não morrer, fica só; se morrer produz muito fruto.” (Jo 12, 24)
Que hoje, através de cada ato de fé nossa doação possa ser livre de qualquer interesse ou limitação humana, na certeza da justiça e amor de Deus em nossa vida.
Crevânia Soares da Silva
Consagrada da Comunidade Católica Pantokrator