Cem anos das “Coisas Novas”. Assim surge a nós a Carta Encíclica Centesimus Annus de S. João Paulo II, para celebrar os 100 anos da Carta Encíclica de Leão XIII, Rerum Novarum (coisas novas).
Por que relembrar com um Encíclica outra Encíclica? Primeiro, vamos entender o que é Encíclica:
Encíclica é uma carta, uma orientação/formação de doutrina, pastoral ou algum ponto da fé para todo o povo de Deus.
A Revolução Francesa trouxe inúmeras transformações para a sociedade (combate à fé, à moral e reconstrução da sociedade a partir de valores não cristãos), criando inúmeras desordens. Em um momento de profunda mudança, surge a Revolução Industrial. Em meio a inúmeras invenções (e redescobertas), surge a eletricidade, a luz noturna e a aplicação da força hidráulica (muito utilizadas desde o séc. XIII) e motores a vapor, as indústrias surgem em meio à urbanização. Inúmeros homens levam suas famílias do campo para a cidade de forma desenfreada em busca de emprego (fugindo da fome e do desemprego).
Um sapato que levava dias para ser feito, em horas era entregue no final da esteira de produção. Móveis que poderiam levar meses de produção, em dias estavam entregues. Com isso, muitos que trabalhavam manualmente perderam seus ofícios e se viram obrigados a ir buscar trabalho na indústria.
Vendo a necessidade de mão de obra e sem regulamentação alguma de trabalho, muitos perderam suas vidas fazendo com que mães e filhos fossem para as fábricas. Vendo a dignidade humana sendo ferida – famílias sendo dizimadas por jornadas exaustivas; pessoas morrendo; o povo de Deus não podendo testemunhar sua fé (seja por falta de tempo para se alimentar através da oração e sacramentos, seja pelo crescente movimento socialista) – a Igreja não fica alheia a essa situação.
Em 15 de maio de 1891, o Papa Leão XII publica a Carta Encíclica Rerum Novarum (Coisas Novas) em que apresenta o panorama social em que se vive e uma resposta católica ao cenário. No dia 1º de maio de 1991, São João Paulo II lança a Encíclica Centesimus Annus. O que há nesses tempos para trazer a necessidade de rememorar a Rerum Novarum?
Em 1989 cai o Muro de Berlim. A queda do Muro foi um símbolo em relação ao Regime Comunista: a queda de um regime totalitário que muitos males trouxe ao mundo e, como as pessoas, que correram de Berlim Oriental para Berlim Ocidental, corre para o Ocidente para lá instalar as ideias revolucionárias.
A Centesimus Annus vem nos relembrar que o caminho da Igreja é o homem. E esse homem não é peça da engrenagem coletiva. A pessoa humana – o homem e a mulher – é fruto do desejo de Deus; e sua singularidade, individualidade, seu ser único é querido por Deus e na sociedade traz a beleza e a cor. Não é a sociedade que moldará, forçará a capacidade, criatividade e educação dessa pessoa, como se fosse um produto de uma produção cultural, educacional ou de produto de um conjunto de normativas e politicagem. A pessoa é livre para ser ela mesma e a Igreja olha para a pessoa humana como PESSOA (cf. Centesimus Annus, capítulo VI).
Outra questão forte que a Centesimus Annus traz é o combate à negação ateísta da fé, por parte de várias linhas revolucionárias que hoje estão tão fortes (globalismo, socialismo, liberalismo, entre outros) e que pregam a morte de Deus (ou sua inexistência). Retirar Deus da sociedade é perder a garantia da Dignidade da Pessoa Humana. Retirar Deus da sociedade é condenar o homem, carregado de pecado e misérias, à mercê de suas más tendências, navegando na luta de classes (burgueses x proletariado; homem x mulher; pais x filhos; clero x leigos; ocidente x oriente; pobre x rico; casados x solteiros etc) a se afundar no discurso de ódio, na manipulação de notícias polarizadas ideologicamente e na busca por retirar os “diferentes” de sua presença.
Quando se dá ao operário (cidadão) algo a se chamar “seu”: casa, carro, dinheiro – fruto de seu trabalho; família, cônjuge, filhos – fruto de seu amadurecimento afetivo e sexual; cidade, estado, país – fruto da estabilidade de sua vivencia social, a pessoa humana pode crescer e ser livre (cf. Centesimus Annus, 44-50.
Quando se retira o que é “seu” e o coloca em condição de “de todos ou pública”, a condição de que o Estado é o grande provedor de suas necessidades, casa, alimento, educação e transporte financiado unicamente pelo Estado; a família definida, regulada e vigiada pelo Estado; a religião orquestrada, regulada e politizada pelo Estado, essa pessoa humana definhará! A Encíclica exorta que a derrota do pensamento socialista não é a vitória do capitalismo, pois este, se vivido sem equilíbrio, retira as liberdades humanas, trazendo não o Estado como Senhor, mas Dinheiro (cf. Centesimus Annus, 8, 42).
Por fim, a Centesimus Annus traz a nós, que vivemos nos últimos dias (cf. 2Tm 3), que a vida não é pagar boleto”. Somos chamados a viver essa vida, construir a “civilização do amor” (Centesimus Annus, 9). Essa civilização não será sem doenças, dificuldades, dores e sofrimentos. Não há previdência social que garanta 3ª idade estável; carteira de vacinação que livre de doenças ou trânsito sem stress. Isso é reservado ao céu! Na civilização do amor haverá civilidade, amor e compaixão.
“Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de ‘segurança nacional’, assistimos hoje à prevalência, não sem contrastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exatamente por isso, é necessário que os povos, que estão reformando os seus regimes, deem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos. Entre os principais, recordem-se: o direito à vida, do qual é parte integrante o direito a crescer à sombra do coração da mãe depois de ser gerado; o direito a viver numa família unida e num ambiente moral favorável ao desenvolvimento da própria personalidade; o direito a maturar a sua inteligência e liberdade na procura e no conhecimento da verdade; o direito a participar no trabalho para valorizar os bens da terra e a obter dele o sustento próprio e dos seus familiares; o direito a fundar uma família e a acolher e educar os filhos, exercitando responsavelmente a sua sexualidade. Fonte e síntese destes direitos é, em certo sentido, a liberdade religiosa, entendida como direito a viver na verdade da própria fé e em conformidade com a dignidade transcendente da pessoa (…). A Igreja respeita a legítima autonomia da ordem democrática, mas não é sua atribuição manifestar preferência por uma ou outra solução institucional ou constitucional. O contributo, por ela oferecido nesta ordem, é precisamente aquela visão da dignidade da pessoa, que se revela em toda a sua plenitude no mistério do Verbo encarnado” (Centesimus Annus, 47).