“Já não vos chamo servos, porque o servo não sabe o que faz seu senhor. Mas chamei-vos amigos, pois vos dei a conhecer tudo quanto ouvi de meu Pai.” (João 15, 15). Nesta passagem Jesus – nosso modelo – nos dá a essência da amizade, ela deve revelar e conduzir à Verdade, assim como a verdade de um amigo deve ser condizente com a nossa. Mas atualmente nos deparamos com relações cada vez mais superficiais, simplistas e falsas, que não representam em nada a beleza da amizade apresentada por Cristo.
Era do utilitarismo
Estamos na era do utilitarismo, em que quase tudo é coisificado, inclusive as pessoas. Dessa forma, a amizade é mais uma fonte de benefício e antídoto à solidão, que de fato uma construção e convergência de caminhos que nos ajuda a chegar ao céu. Sujeitarmo-nos a uma amizade assim é incoerente com a nossa dignidade e com a valorização daquilo que nós somos, não somos qualquer “coisa” e os frutos que podemos dar ao outro são preciosos.
Uma amizade incoerente pode ser tanto aquela conhecida como “tóxica” e abusiva nos dias de hoje, como aquela que dividimos com alguém que diverge completamente dos nossos propósitos, princípios e estilos de vida. Falaremos primeiro da “tóxica”, a tal amizade da coisificação que é incoerente à nossa dignidade de filhos de um Deus Todo Poderoso.
Amizade incoerente à dignidade
Eu já me encontrei, infelizmente, em mais de uma amizade desse tipo, ela nos consome e nos deixa refém da opinião e da verdade distorcida do outro. Este tipo de amizade coloca o suposto amigo como senhor da nossa vida, causa dependência em relação àquela pessoa e parece que não há escapatória. Mas há sim! Porque há um verdadeiro Senhor, amigo de verdade da alma e que através dos outros aqui na Terra se faz presente através das amizades.
A primeira coisa que foi fundamental quando vivi uma situação dessas foi dividir tudo aquilo que eu estava vivendo com as pessoas que mais confiava, minha família. Por mais que numa amizade não saudável tenhamos muita dificuldade em nos reconhecer num cenário desses, a verdade que habita em nós sempre aponta que há algo que não está certo. E quando o sensor do meu valor apitou, pelo Espírito Santo que habita em mim, deparei-me com todo esse caos que estava inserida e foi muito difícil no começo, percebi como estava sendo serva da maldade do outro e não amiga da verdade.
Quando a pessoa tem tanto peso em nossa vida é difícil se desvencilhar e se afastar de maneira abrupta. E aliado a oração, pedindo fortaleza ao Espírito Santo para me posicionar, procurei ajuda e, aos poucos, fui me distanciando, virava e mexia eu caía de novo nessa suposta amizade que não me fazia bem, que me manipulava, me usava e me colocava num lugar de indignidade. Lutar contra sair desse lugar é difícil, mas é totalmente possível e nos encontramos muito mais fortes, autorresponsáveis e conscientes do nosso valor.
Hoje não é qualquer um que entra na minha vida com o nível de profundidade, verdade e comprometimento que são basilares numa amizade, é preciso confiança, porque na amizade há um acordo em ajudar o outro, através da minha vida, a encontrar a alegria, o amor e Cristo! E isso nos leva ao segundo tipo de amizade incoerente: àquele que nos afasta do céu.
Amizade incoerente ao Céu
Devemos ter cuidado com isso, ter um amigo não é ter uma réplica minha, é conviver com o diferente, mas esse diferente que não me desvirtue e me afaste da minha essência, senão caímos na toxicidade já explicitada. Esse diferente deve ter uma base de princípios parecida com a minha. Pense que você é um plantador de hortaliças e seu “amigo” é um amante da destruição de todas as hortas, porque ele simplesmente as odeia muito e acha que a alimentação deva ser toda industrializada.
É diferente de ter um amigo que não goste de hortaliças, mas que respeita e valoriza o seu trabalho e o seu estilo de vida, e que reconhece, por mais que não seja um fã delas especificamente, a importância de uma alimentação saudável e balanceada. Eu usei um exemplo extremamente bobo, mas para entendermos essa linha nem um pouco tênue, mas que pode parecer. Isso evita com que caiamos num radicalismo sobre o nosso círculo de amizades e que vivamos numa bolha.
Eu tenho amigas de outras religiões, que respeitam muito a minha busca por Deus e que inclusive são grandes potências que me ajudam ainda mais a encontra-Lo. Eu tenho amigos que divergem de vários gostos meus e às vezes até de opiniões minhas, mas nada que fira o que é fundamental para mim: a minha identidade, a minha dignidade, meu desejo de santidade, meu Amor por Deus e meus valores.
E para sair desse segundo tipo é só você pensar: “eu preciso ser outra pessoa, diferente daquilo que eu sou, quando estou com o fulano? Preciso mentir ou omitir alguma coisa?”. Se alguma das respostas for sim, repense com quem você está dividindo a sua vida. É um grande indicativo de que você deve romper com elas.
Mas como? É tão difícil! É mesmo, muitas vezes eu pensava “agora vai!”, chegava o momento e parece que tudo o que eu tinha ensaiado na frente do espelho ficava engasgado. O ideal a se fazer é ter uma conversa franca e honesta com a pessoa, “respeito muito você e suas escolhas, mas elas não combinam comigo e com aquilo que eu quero para mim”. Porém, se você for muito preocupado com aquilo que os outros pensam, como eu, tente se afastar aos poucos.
Evite sair muito com a pessoa, espace o contato, claro que com muita educação e respeito, mas vá se libertando aos pouquinhos. Encontrei em Nossa Senhora uma grande amiga que me ajudou a sair de péssimas amizades, minha mãe da Terra é minha maior conselheira, e quando estava numa situação em que não podia conversar com ela, a Mãe do Céu – mais poderosa ainda – estava lá para ser chamada e prontamente me respondia.
Não sinta a pressão de hoje em ter inúmeros amigos, que vem da falsa ilusão das redes sociais, tenha seriedade e responsabilidade com aqueles que entram na sua vida, porque ela vale muito. E os amigos de verdade reconhecem isso e potencializam nosso valor, eles podem ser raros, mas são suficientes desde que resplandeçam a beleza de Cristo.
Ana Clara Gonçalves
Postulante na Comunidade Católica Pantokrator